Curtas

Manual jurídico feminista

Obra discute a presença feminina no Direito

TEXTO Paula Mascarenhas

03 de Maio de 2019

Detalhe da ilustração de capa

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Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 221 | maio de 2019]

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Ao realizar
uma pesquisa na internet com a expressão “mulher jurista”, apenas 19, entre as 50 primeiras imagens que aparecem como resultado, são de verdadeiras mulheres juristas brasileiras. A maioria das fotografias da pesquisa mostra homens (ministros, juristas ou acusados de crimes), além de outras situações diversas, mas poucas mulheres atuantes na área – ao se tratar de juristas negras ou indígenas, o resultado ainda é mais escasso. Mas o que essa simples apuração revela sobre a representação feminina nos espaços jurídicos?

Quem apresenta esses dados como uma provocação para compreender a fundo o processo histórico de anulação das referências femininas dentro do Direito é a professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Ana Pontes. Seu artigo sobre o silenciamento de fontes femininas na área é um dos textos que integram uma obra necessária e inovadora para as ciências jurídicas: o Manual jurídico feminista.

Recém-lançado no Recife pela Editora Letramento, o livro foi idealizado e coordenado pela também professora pernambucana Carolina Ferraz, que, além de advogada e doutora em Direito, integra o Grupo Frida de Gênero e Diversidade da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Assim, sob a ótica da teoria crítica feminista, a obra reúne 16 artigos de diversas pesquisadoras, especialistas e juristas de todo país que visam difundir os anseios, as inquietações e os desafios femininos no âmbito do Direito brasileiro.

“O Manual jurídico feminista é uma grito de libertação. Surgiu como um esforço coletivo de mulheres ativistas que não se conformam com a legislação que silencia e oprime. Dessa forma, a intenção do Manual é questionar a ordem vigente e lutar por um ‘Direito’ menos hostil não só para as mulheres, mas também para os grupos socialmente vulnerabilizados”, reforça Carolina Ferraz, em entrevista à Continente.



O prefácio da obra, assinado pela professora e escritora Anielle Franco, já revela a força propositiva do livro, que também não deixou de lado questões essenciais para as mulheres nos dias de hoje, como empatia, sororidade e empoderamento. Anielle, que hoje também é diretora do Instituto Marielle Franco em memória de sua irmã, a vereadora assassinada em 2018 no Rio de Janeiro, representa uma continuidade da resistência feminina que marcou a trajetória de vida de Marielle e que, de várias formas, transparece nos artigos.

“Cada capítulo nos recorda os muitos obstáculos e os variados enfrentamentos no campo de batalha contra políticas, atos, comportamentos, e hábitos repressivos e misóginos, ao mesmo tempo que nos brinda com posicionamentos e inspirações para a concretização de uma sociedade mais plural e inclusiva, pautada na igualdade de direitos e oportunidades entre mulheres e homens”, escreve Anielle.

Embora haja avanços na legislação brasileira e na Constituição Federal de 1988 – não apenas em relação à equidade de direitos entre os gêneros, mas também na autonomia e na proteção das mulheres –, o ordenamento jurídico e político do país é historicamente excludente e as relações sociais cotidianas ainda refletem essa desigualdade. Produzidas por homens e para homens, as bases do Direito estão arraigadas na naturalização da inferiorização feminina, no seu afastamento na tomada de poder e de decisões, e, principalmente, como objeto de dominação masculina, quando mulheres eram consideradas posse do pai ou do marido.

Além de não ser tradicionalmente sujeito na legislação e nas práticas jurídicas, a figura feminina também nunca foi protagonista da ciência do Direito. A presença de autoras na área é quase nula, não apenas nos livros, mas também em manuais jurídicos, teses e dissertações. Paradoxalmente, esse apagamento e silenciamento contradizem a realidade brasileira: dados da Ordem Brasileira dos Advogados (OAB) revelam que, em 2017, as mulheres representavam 48,2% do total de advogados inscritos no órgão; a previsão é que no ano de 2020 esse número ultrapasse a quantidade de advogados homens. Do mesmo modo, o Censo da Educação Superior de 2016, última edição do levantamento, revela que as mulheres representam 57,2% dos estudantes matriculados em cursos de graduação no país, ocupando 55% das vagas nos cursos de Direito.


Joênia Wapichana é a primeira mulher indígena a se tornar jurista e deputada federal no Brasil. Foto: Cleia Viana/Divulgação

Assim, a produção do Manual jurídico feminista visa transformar essa realidade, não só para que cada vez mais mulheres pesquisadoras e juristas ocupem esses espaços, mas para que também o Direito incorpore mais matérias e temáticas femininas na legislação, seja pensado e formulado a partir de novas linguagens, teorias e premissas que abarquem os diversos feminismos – negro, lésbico, indígena, liberal, marxista – e suas urgências e necessidades. O livro, portanto, torna-se uma concretização de um Direito real, adequado à diversidade social, política e racial da mulher.

A professora Ana Pontes, que também conversou com a Continente sobre o Manual, destaca que é necessário combater a visão de que o Direito é um mundo à parte. “Por motivos variados, inclusive de manutenção de estruturas de poder, a área jurídica mantém esse afastamento. Mas é preciso aproximar-se do conhecimento das pessoas tanto quanto atravessar o cotidiano delas. Entender como o Direito é utilizado na manutenção das desigualdades é um passo indispensável para apropriar-se de um posicionamento político – pois viver em sociedade é essencialmente político – e aprender a dominar estratégias para desestruturar essas amarras”, Ana reafirma.

A partir dessa perspectiva de difusão do conhecimento jurídico e do direito feminista, todas as coautoras abriram mão dos direitos autorais do livro: a cada 200 exemplares vendidos, a editora doará 40 para projetos de educação popular para mulheres e meninas, coletivos feministas, quilombolas, comunidades indígenas e bibliotecas de universidades e escolas. E sobre a união feminina, representada tão bem pelo Manual, Ana Pontes ainda acrescenta: “Nada mais atual e tocante que a escritora feminista Audre Lorde: ‘não serei livre enquanto outras mulheres não sejam, ainda que as correntes delas sejam diferentes das minhas’”. O Manual jurídico feminista está à venda no site da Editora Letramento.

Extra:
Leia a Carta de introdução ao feminismo jurídico, escrita pela coordenadora do projeto.

PAULA MASCARENHAS é graduada em Letras pela UFBA, estudante de Jornalismo pela UFPE e estagiária da Continente.

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