Curtas

Luz nos trópicos

Buscas existenciais de um jovem kuikuro em filme da cineasta franco-colombiana Paula Gaitán

TEXTO João Rêgo

01 de Março de 2021

Em 'Luz nos trópicos', o personagem vivido por Begê Muniz, um indígena kuikuro nascido no exterior, resolve retornar à terra de seus ancestrais

Em 'Luz nos trópicos', o personagem vivido por Begê Muniz, um indígena kuikuro nascido no exterior, resolve retornar à terra de seus ancestrais

FOTO DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 243 | março de 2021] 

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Nas primeiras cenas de Luz nos trópicos (2020), o mais denso dos filmes recentes da cineasta franco-colombiana Paula Gaitán, um homem de olhos fechados medita, enquanto escutamos uma voz descrever a criação do mundo por Mawutzinin, deus de culturas indígenas da região do Xingu, localizada no Mato Grosso.

O foco muda e a câmera é direcionada para a traseira de um barco em movimento. Sobre as águas do East River, gradualmente nos afastamos do céu cinza da cidade de Nova York. As cores neutras persistem em imagens da neve invernal, até um corte nos transportar para outro cenário.

Estamos na companhia de um dos vários personagens do filme, um jovem indígena (Begê Muniz) que parte em busca da sua ancestralidade kuikuro, em direção ao parque do Xingu. A câmera, agora, na dianteira do barco, navega em outro rio, rodeado pelo verde das plantas, o azul brilhante do céu e os sons do Pantanal.

O tom é quase inebriante, meditativo pelo seu ritmo e contemplativo pela paisagem. Mas não há qualquer uso de artifícios. O que está ali na nossa frente é o mundo material, dos sentidos.

A fotografia, assinada por Pedro Urano, é quase um contraste à maior referência atual, quando o assunto é filmar florestas, o tailandês Sayombhu Mukdeeprom, responsável pela supra-humana fotografia de Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (2011), do seu conterrâneo Apichatpong Weerasethakul.

As imagens são limpas, artesanais, por serem – na mais explícita definição – reais. As capturas oportunas de animais, movimentos e iluminação não buscam a transformação do material em virtuosismo cinematográfico, mas ressaltar a potencialidade imanente da natureza.

Se, por essa objetividade, o adjetivo “documental” saltar para a ponta da língua, o melhor a se fazer é recolhê-lo. Afinal, ainda estamos falando de uma obra de Paula Gaitán, cineasta de polimorfismos. Em Luz nos trópicos, cinemas, temporalidades e histórias coexistem, sendo elas análogas ou antagônicas. 

Nas primeiras das quatro horas de duração, acompanhamos a narrativa genuína do retorno ao lar de um jovem indígena, entre registros que beiram a ficção e a documentação de uma aldeia kuikuro. 

De repente, estamos em outra época, observando a rotina de colonizadores franceses e portugueses explorando aquela mesma floresta. Os diálogos se tornam curtos, dando espaço a planos longos que contrastam os corpos europeus à paisagem tropical (um movimento próximo, porém menos “politicamente” instrumentalizado, a Zama, 2017, da argentina Lucrecia Martel).
 
O filme mescla registros documentais e ficcionais ao longo das suas quatro horas de duração. Imagem: Divulgação

Se este salto causa o primeiro estranhamento, quebrando o tédio, toda convenção é derrubada com a libertação performática de Arrigo Barnabé (que interpreta um dos estrangeiros) se entregando a uma apresentação musical de batuques, construção rítmica distante daquele universo ficcional até então conduzido.

O músico-personagem arremata uma versão improvisada da sua composição Dedo de Deus. “Será que Deus mudou? Ou será que mudamos de Deus?”, diz um trecho. Talvez esteja aí a melhor definição para Luz nos trópicos.

Não existem elevações, quebras de narrativa ou de ritmo, porque nunca existiu um referencial particular. A língua indígena ressoa em Nova York e seu rio cinza que desliza com a câmera até as águas do Pantanal, espaço onde acontecerá o encontro entre o presente, o passado próximo e o secular. Em um raccord, os olhares do jovem indígena kuikuro se cruzam com os do europeu. 

Épocas, povos, florestas, espaços, fotos, pinturas, todos habitam o mesmo universo cênico. Luz nos trópicos é uma busca incessante pela ontologia do mundo, desde a história e suas cicatrizes até o que une o homem, a terra e o movimento das águas. São metáforas, sentidos e narrativas organizados pelos nossos gestos primários como espectadores de estranhar, sistematizar, significar e, finalmente, assistir a tudo se desmantelar à nossa frente. 

Paula Gaitán nos convida para uma jornada de metamorfoses, reunindo quase tudo que construiu em sua carreira, de Uaka (1988) a Exilados do vulcão (2013). Em Luz nos trópicos, coabitam imagens de arquivos, película, Super 8, 16 mm, documentação dialógica, experimentação pictórica e rítmica, cinema de fluxo e cortes rápidos. Sobrepõem-se as sensações, em um filme conservado por uma unidade estilística sutil.

Se a câmera de Urano é pura, Gaitán a complexifica na composição de cada quadro – como alguém que, em É rocha e rio, Negro Leo, outro dos seus recentes filmes, ao entrevistar durante quatro horas o genro, consegue encontrar um plano transcendental no simples movimento do vento sobre uma cortina.

Aliás, essa é a característica que marca todos seus quatro trabalhos lançados entre 2020 e 2021, em festivais online que não chegaram a levar as obras às salas de cinema. Exceto Luz nos trópicos, que ainda foi exibido no 70º Festival de Berlim, último dos grandes eventos realizados presencialmente. Desde o 4º Festival Ecrã, com o já citado documentário com Negro Leo, os filmes de Gaitán passaram por seleções como a do Doc Lisboa, Olhar de Cinema e Cine BH. Luz nos trópicos não tem previsão de exibição pública para este ano ainda.

Em janeiro deste ano, a cineasta foi devidamente homenageada pela 24º Mostra Tiradentes, disponibilizando vários curtas e longas, como os novos Ópera dos cachorros, Ostinato (com Arrigo Barnabé) e Se hace camino al andar. Também estavam presentes no festival mineiro Diário de Sintra (2007), que acompanha o exílio de Glauber Rocha – seu ex-marido – em Portugal, e Mulher do fim do mundo, Elza Soares (2017).

“Usar esse termo experimentação para definir sua obra não é um atalho terminológico e genérico, mas uma chave eficaz e que sugere necessária complexidade na aproximação de imagens que desafiam as definições e categorias mais convencionais do cinema contemporâneo”, descreve o texto que justifica sua homenagem pelo festival.

Escrever sobre Luz nos trópicos é justamente este rodeio para convencer que a não definição é uma qualidade sui generis, e não necessariamente poesia enlevada. Ou, como diria João Cesar Monteiro, em seu curta sobre Sophia de Mello Breyner Andresen (1969): “O que é filmável é sempre outra coisa que pode ou não ter uma qualidade poética”.

Longe do proselitismo político, e compreendendo as distâncias e aproximações com o convencional, Paula Gaitán faz um cinema que adere à expansibilidade das vírgulas e reticências, quando a moda se tornou utilizar pontos finais.

JOÃO RÊGO, jornalista em formação pela UNICAP e estagiário da Continente.

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