O filme mescla registros documentais e ficcionais ao longo das suas quatro horas de duração. Imagem: Divulgação
Se este salto causa o primeiro estranhamento, quebrando o tédio, toda convenção é derrubada com a libertação performática de Arrigo Barnabé (que interpreta um dos estrangeiros) se entregando a uma apresentação musical de batuques, construção rítmica distante daquele universo ficcional até então conduzido.
O músico-personagem arremata uma versão improvisada da sua composição Dedo de Deus. “Será que Deus mudou? Ou será que mudamos de Deus?”, diz um trecho. Talvez esteja aí a melhor definição para Luz nos trópicos.
Não existem elevações, quebras de narrativa ou de ritmo, porque nunca existiu um referencial particular. A língua indígena ressoa em Nova York e seu rio cinza que desliza com a câmera até as águas do Pantanal, espaço onde acontecerá o encontro entre o presente, o passado próximo e o secular. Em um raccord, os olhares do jovem indígena kuikuro se cruzam com os do europeu.
Épocas, povos, florestas, espaços, fotos, pinturas, todos habitam o mesmo universo cênico. Luz nos trópicos é uma busca incessante pela ontologia do mundo, desde a história e suas cicatrizes até o que une o homem, a terra e o movimento das águas. São metáforas, sentidos e narrativas organizados pelos nossos gestos primários como espectadores de estranhar, sistematizar, significar e, finalmente, assistir a tudo se desmantelar à nossa frente.
Paula Gaitán nos convida para uma jornada de metamorfoses, reunindo quase tudo que construiu em sua carreira, de Uaka (1988) a Exilados do vulcão (2013). Em Luz nos trópicos, coabitam imagens de arquivos, película, Super 8, 16 mm, documentação dialógica, experimentação pictórica e rítmica, cinema de fluxo e cortes rápidos. Sobrepõem-se as sensações, em um filme conservado por uma unidade estilística sutil.
Se a câmera de Urano é pura, Gaitán a complexifica na composição de cada quadro – como alguém que, em É rocha e rio, Negro Leo, outro dos seus recentes filmes, ao entrevistar durante quatro horas o genro, consegue encontrar um plano transcendental no simples movimento do vento sobre uma cortina.
Aliás, essa é a característica que marca todos seus quatro trabalhos lançados entre 2020 e 2021, em festivais online que não chegaram a levar as obras às salas de cinema. Exceto Luz nos trópicos, que ainda foi exibido no 70º Festival de Berlim, último dos grandes eventos realizados presencialmente. Desde o 4º Festival Ecrã, com o já citado documentário com Negro Leo, os filmes de Gaitán passaram por seleções como a do Doc Lisboa, Olhar de Cinema e Cine BH. Luz nos trópicos não tem previsão de exibição pública para este ano ainda.
Em janeiro deste ano, a cineasta foi devidamente homenageada pela 24º Mostra Tiradentes, disponibilizando vários curtas e longas, como os novos Ópera dos cachorros, Ostinato (com Arrigo Barnabé) e Se hace camino al andar. Também estavam presentes no festival mineiro Diário de Sintra (2007), que acompanha o exílio de Glauber Rocha – seu ex-marido – em Portugal, e Mulher do fim do mundo, Elza Soares (2017).
“Usar esse termo experimentação para definir sua obra não é um atalho terminológico e genérico, mas uma chave eficaz e que sugere necessária complexidade na aproximação de imagens que desafiam as definições e categorias mais convencionais do cinema contemporâneo”, descreve o texto que justifica sua homenagem pelo festival.
Escrever sobre Luz nos trópicos é justamente este rodeio para convencer que a não definição é uma qualidade sui generis, e não necessariamente poesia enlevada. Ou, como diria João Cesar Monteiro, em seu curta sobre Sophia de Mello Breyner Andresen (1969): “O que é filmável é sempre outra coisa que pode ou não ter uma qualidade poética”.
Longe do proselitismo político, e compreendendo as distâncias e aproximações com o convencional, Paula Gaitán faz um cinema que adere à expansibilidade das vírgulas e reticências, quando a moda se tornou utilizar pontos finais.
JOÃO RÊGO, jornalista em formação pela UNICAP e estagiário da Continente.