Curtas

Luz dentro do caos

Banda Madame Javali mostra o resultado de três anos de trabalho no recente álbum Luz dentro do caos, todo produzido em Aracaju, com a maior parte das gravações realizadas em casa

TEXTO ERIKA MUNIZ

03 de Julho de 2019

Os integrantes da Madame Javali – Fábio Barros, Luno Torres, Gabriel Perninha, Allan Jonnes e João Mário

Os integrantes da Madame Javali – Fábio Barros, Luno Torres, Gabriel Perninha, Allan Jonnes e João Mário

Foto Blenda Santos/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 223 | julho de 2019]

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Quando Ana Cristina César publicou A teus pés, em 1982, nem imaginava que um de seus versos daria nome, décadas depois, a uma banda de Sergipe. Mas acontece que, quando ganha o mundo, o texto se desgarra, segue significando e incessantemente dando crias. Assim, na destreza de um poeta sergipano, o que nascera parte de um poema, transformou-se, em 2016, no grupo Madame Javali.

Esse nome – vocativo retirado do verso “A matilha de Londres caça a minha maldade pueril, cândida sedução que dá e toma e então exige respeito, madame javali”, do poema Meia-noite, 16 de junho, de Ana C. – parece ter sido feito sob medida, já que sintetiza tão bem a poética e proposta da banda, que é tensionar as fronteiras entre a literatura e a música.

“Gosto dessa junção de palavras que causa um estardalhaço e traz essa dualidade. A madame com a sua pompa e classe e o porco selvagem, uma sujeira. No sul, o javali é o terror de plantações, uma peste”, explica o poeta sergipano Allan Jonnes, por telefone. “Madame Javali sugere que na mesma encarnação de uma figura, uma personagem, coexista a contradição. É irônico com o fato de que a literatura sempre ocupou um lugar muito pomposo, muito elegante, enquanto a música popular e a oralidade sempre estiveram identificadas, para as instâncias legitimadoras da arte, como espaço pouco civilizado, bárbaro e selvagem. A Madame Javali é, então, a música que a gente persegue”, complementa.

Seja no Twitter ou em conversas da mesa de bar, os limites – ou a ausência deles – entre a canção e o poema constantemente retornam ao debate. Há pouco, por exemplo, o compositor e romancista Chico Buarque de Hollanda venceu o Camões, maior prêmio de língua portuguesa, pelo conjunto de sua vigorosa obra. Em poucos minutos, após o anúncio, a premiação dividiu as pessoas nas redes. Quando Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura, em 2017, a discussão também foi fervorosa. Para os integrantes da Madame Javali – Fábio Barros, Luno Torres, Gabriel Perninha, Allan Jonnes e João Mário –, no entanto, qualquer tentativa de hierarquizar literatura em detrimento da música não lhes interessa, visto que preferem justamente romper com essas estruturas.


Capa do disco Luz dentro do caos. Foto: Janaína Vasconcelos/Divulgação

“A gente tem necessidade de aberturas dos poemas. Mudamos versos de lugar. Não se trata o processo de composição de uma letra de música como menor, que também é complexo. Nem sempre o melhor poeta será o melhor letrista. Não dá para tratar o poema como superior”, reflete Allan, sobre como eles percebem as linguagens.

Resultado dos três anos do Madame Javali é o recente álbum Luz dentro do caos, todo produzido em Aracaju, com a maior parte das gravações realizadas em casa, a cargo de João Mário. “Só a bateria que gravamos em estúdio”, ressalva Allan, que, além da publicação do livro Pequeno volume, desenvolve um consistente trabalho em poesia falada há alguns anos. Ele participou de eventos como a Flip, em Paraty (RJ) e a Balada Literária, em São Paulo (SP). No Recife, quem acompanhou a última edição do saudoso Festival Internacional de Poesia, em 2014, na Torre Malakoff, viu Allan performar O amigo mais proibido, um dos poemas musicados neste novo disco. Dessa vez, porém, a história de Fernandinho, “filho de macumbeiro, preto, perna de Omolu”, recebe um arranjo com guitarras, baixo, percussão e bateria, carregado do groove que sutura a musicalidade das nove faixas.

Uma constante na fala de Allan e de Fábio é pontuar como o processo criativo da Madame Javali acontece de modo coletivo. Cada um dos cinco tem suas respectivas influências estéticas, habilidades e desenvolvem projetos paralelos à banda, na música ou na poesia. Isso alarga as possibilidades criativas do grupo, que traz nas letras claras referências à cidade de Aracaju, onde todos os cinco moram.

O olhar aos detalhes da cidade se faz presente em várias das canções-poema de Luz dentro do caos. Exemplo disso está em Da utilidade pública, cujo personagem principal remete a um vendedor de algodão-doce que circula pelo bairro aracajuense de Atalaia. Apesar da clara referência, a narrativa cabe a figuras urbanas presentes em metrópoles brasileiras. O mesmo cabe a Gisele, que “não é uma, mas são muitas”, diz Allan. Basta somente alguém sensível e disposto a estar atento às minúcias da urbe. Hábito de poeta, talvez.

“Encontro ele sempre que vou comprar pão”, brinca Jonnes, revelando, em seguida, algumas de suas referências, como o poeta Miró da Muribeca, os músicos Luiz Tatit, Itamar Assumpção e o grupo Cordel do Fogo Encantado. As de Fábio Barros, por sua vez, trazem o pernambucano Siba Veloso e o mestre Gilberto Gil. “Busco artistas que deem atenção à letra, que tenham a preocupação de trazer elementos poéticos e flertem música com poesia”, conta, em entrevista à Continente. Todas as nove faixas de Luz dentro do caos encontram-se disponíveis no Youtube e nas plataformas Spotify e Deezer.

ERIKA MUNIZ, formada em Letras (UFPE), estudante de Jornalismo (Unicap).

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