O casal assina a produção de Lunar, que só pôde ser viabilizado durante a pandemia, porque foi quando os dois encontraram tempo livre. Antes, Laura estava sempre com a agenda lotada por conta das viagens pelo Brasil e pela África Ocidental como produtora e tradutora do contador de histórias François Moïse Bamba, do Burkina Faso. Os dois se conheceram em 2017, durante o Festival de Teatro do Agreste, o Feteag, no qual ela fez a tradução da contação de histórias dele pela primeira vez, dando início a uma frutífera parceria. Não é à toa que o artista africano participa do disco em faixas como Ajuda eu, tambor e Korombo.
Ambas as faixas trazem histórias e cantos de domínio público, que Laura aprendeu durante suas vivências mundo afora, sendo estes uns dos poucos momentos do disco em que o repertório não é autoral. “Queria mostrar o quão rico é estar lá e poder reconstruir essas conexões. Você escuta a música de lá e reconhece o tambor, mas, ao mesmo tempo, tem um suingue diferente. A gente acaba se vendo em muitas coisas, por isso desejo que o disco seja uma forma de transbordar isso”, explica.
Lunar teve produção de Laura Tamiana e Helder Vasconcelos.
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Apesar do intercâmbio cultural também acontecer nas músicas escritas por Laura, como Temperança, que tem arranjos do instrumento de corda africano kora (uma harpa-alaúde de 21 cordas), ele fica ainda mais evidente em Ajuda eu, tambor. O título reúne sob o mesmo arranjo o congo do Espírito Santo, que nomeia a faixa, a música Éh ni n’gowa sô nion balé, da Costa do Marfim, e Miva do, do Togo. Esta última foi transmitida para Laura pelo contador de histórias Allassane Sidibé, que participou do pout-pourri e ainda ensinou a artista brasileira a cantar Meli Zaa Loo.
Esse canto togolês fala de vidas transformadas por acontecimentos bruscos, como a morte, e é interpretada apenas por Laura, em dedicação ao seu pai e ao amigo Fernando Barba, falecidos durante o processo de criação do trabalho. Idealizador dos Barbatuques, Barba ainda foi homenageado com a percussão corporal do amigo e companheiro de grupo André Hosoi, que soma as pesquisas de cultura popular paulistana à tradição do Togo. “É para todas as pessoas que partiram, mas ficam aqui vivendo em nós. Achei interessante trazê-la, ainda mais neste momento de tantas partidas”, completa.
Outra personalidade celebrada no disco é o músico pernambucano Guitinho de Xambá, integrante do grupo Bongar, que foi vítima de um AVC fatal no início deste ano. Ele ganha o coco De canto a canto, que se soma às outras referências musicais brasileiras do álbum, como o samba, o maracatu e o ijexá. Os arranjos foram compostos coletivamente com os artistas convidados, mas além de Helder e Laura, o time principal também contou Johann Brehmer, Rodrigo Félix e Rodrigo Samico, que coproduziram o trabalho. A coerência e a unidade sonora do conjunto das canções vêm para comprovar o parentesco entre esses ritmos e seus primos africanos, transparecendo a mesma matriz.
Tendo a cultura negra como matéria-prima principal do trabalho, Laura é tão respeitosa com as suas influências, que pede licença aos “donos da casa”, em Chão novo, antes de dar continuidade ao seu ciclo lunar. “Esse chão que eu piso agora é chão novo para mim. Chão antigo, chão de histórias, vou pisando miudim”, dizem os versos, que descartam qualquer descuido. “Fui criando vínculo com todas essas pessoas, então quando fui gravar esse som saiu naturalmente, porque essas relações estavam pulsantes. Sou só um canal possível para essas coisas se manifestarem, não quis usar nada que não fosse a minha vivência”, observa ela, que também integra o Maracatu Piaba de Ouro e o Boi Marinho há 14 anos.
Com a participação de Alessandra Leão, Alba Cabral e Nice Teles, a faixa-título do disco resume a sua proposta de representar o movimento cíclico da vida. Desde Iniciação até Despedida, cada faixa representa uma das 13 luas que circulam em torno da Terra durante o ano. A narrativa ainda ganha um reforço de peso no projeto gráfico desenvolvido para o encarte pela artista visual Laís Domingues. Através das imagens das “luas” de Laura é possível observar que o Brasil e a África repousam sob a mesma noite.
CAMILA ESTEPHANIA, jornalista.