Curtas

Levante artístico na Ocupação 9 de Julho

Exposição 'O que não é floresta é prisão política' discute, em São Paulo, momento da extrema direita no Brasil com trabalhos de mais de 60 artistas e ativistas brasileiros

TEXTO MARINA SUASSUNA, DE SÃO PAULO*

30 de Outubro de 2019

Parte da exposição 'O que não é floresta é prisão política'

Parte da exposição 'O que não é floresta é prisão política'

Foto Luiz Miyasaka/Divulgação

Impossível não pensar o Brasil de 2019 como uma grande prisão. Diante dos incêndios e desastres que atingem a nossa nação, num momento em que as instituições de arte e os movimentos sociais estão sendo alvo de censura e perseguição pelo aparelho estatal, a exposição coletiva O que não é floresta é prisão política, em cartaz na Galeria Reocupa, da Ocupação 9 de Julho, no centro de São Paulo, cumpre um papel importante de reflexão crítica e contra-ataque.

Uma exposição fora dos padrões, pensada e articulada por mais de 60 artistas e ativistas brasileiros como uma resposta ao momento reacionário de extrema direita enfrentado no país. Uma partilha coletiva de vozes que, articuladas, montam um discurso de resistência e de consciência política, uma egrégora de luta.

“Quando nós, artistas, começamos a construir a exposição, ainda não tínhamos no horizonte os incêndios na Floresta Amazônica, tampouco as notícias dos mandados de prisão das lideranças dos movimentos por moradia, como é o Movimento Sem Teto do Centro, o MSTC. Mas intuíamos que o inaceitável se aproximava. A mostra nasce, portanto, neste contexto. É um processo em curso que, como uma floresta, não se fecha e se realiza de forma colaborativa”, diz o texto de apresentação da mostra.


Foto: Luiz Miyasaka/Divulgação

Usando a metáfora da floresta como um sistema cooperativo que se renova e se reformula continuamente, sem fronteiras e limites, a exposição contempla diversas práticas artísticas, sem uma hierarquia na seleção e montagem das obras, que serão renovadas a cada mês, em eventos e atividades programadas. Também não há uma data de encerramento definida, podendo assumir diversos caminhos e desdobramentos.

Por se tratar de uma exposição num espaço de resistência gerido pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), cujas principais lideranças vêm sendo criminalizadas, a mostra tem um impacto que envolve, principalmente, um sentimento de guerrilha. “A exposição em si, junto com a luta do MSTC, os presos políticos e as florestas queimadas, tudo isso funda uma tropa de combate contra este governo que incentiva estes ataques”, diz o artista pernambucano Lourival Cuquinha, que participa com a instalação Apólice do Apocalipse. Ele também chama atenção para o obscurantismo que tomou conta das instituições de arte: “Algumas instituições vêm tentando discutir estes temas relativos à situação contemporânea reacionária do Brasil e do mundo, só que dentro da 9 de julho é o olho do furacão. As instituições de arte estão sendo atacadas em maior ou menor grau, mas uma ocupação de um movimento por moradia sempre foi atacada e, ao mesmo tempo, ela é um ataque em si para a obtenção de direitos que o Estado deveria garantir”.

Muitos dos artistas estão diretamente envolvidos com a rotina da Ocupação 9 de Julho e da luta social por moradia, como Eduardo Fraipont, Sato do Brasil, Joana Amador, Georgia Kyriakakis, Cacá Mousinho, Néle Azevedo, Ding Musa, Erica Ferrari, Lucas Bambozi, Georgea Miessa, Marcelo Calheiros, Nathalia Leter, entre tantos outros.


Instalação Apólice do Apocalipse, de Lourival Cuquinha.
Foto: Luiz Miyasaka/Divulgação


A exposição pretende circular pelo Brasil num projeto de itinerância que inclui, até agora, o coletivo Lanchonete Lanchonete, de Thelma Vilas Boas, no Rio de Janeiro, o Centro de Formação Paulo Freire, em Caruaru, e o coletivo Aparelho, em Belém do Pará. Mas, para isso, os artistas precisam de apoio e estão em busca de parcerias.

“Não sabemos se todas as obras que estão atualmente vão participar da itinerância ou se os artistas trocarão ou farão novas para somar além dessas. Mas vamos ter artistas dos locais por onde a mostra passar. Esta exposição nunca se completa, ela é uma proposta e não uma coleção de obras”, enfatiza Cuquinha.

BANDEIRAS DE LUTA
São várias as bandeiras levantadas na exposição. Uma delas está sendo leiloada: a bandeira Lula Livre, assinada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Outra foi criada especialmente para a mostra. As veias abertas de uma América utópica, de Sato do Brasil, propõe uma ressignificação da bandeira nacional, subvertendo a frase “Ordem e Progresso” para expor a ideia de um país ainda em construção. “Para o bem e para o mal, um país em progresso”, diz o artista.

“É a nova simbologia que ela tomou nesses tempos de divisão dualista/duelista entre verde e amarelo e vermelho. Em um símbolo do ódio que quase se tornou pelos fascistas é também um contraponto do encontro que os habitantes deste país, ao encontrar uma moradia-raiz, mostram em suas trajetórias”, reflete Sato, que trabalha com a ideia de desfronteira e tecnologia do encontro. “Quando nos encontramos de verdade, nos transformamos, às vezes além dos limites, nos tornando um só, mesmo que, em um mínimo momento, desde a gargalhada só gozo, ao prazer de uma sabedoria aprendida. Nesse lugar, as linhas vermelho-sangue costuradas na bandeira se amontoam de tal forma, nos pontos de chegada-lugar-encontro-moradia, que perdem suas individualidades e se tornam um amontoado de vidas, quase uma só.”


As veias abertas de uma América utópica, de Sato do Brasil. Imagem: Reprodução

No geral, vários outros artistas levantam a sua bandeira. “É o nosso levante, nosso estandarte e nossa alegoria. Sempre lembro de Hélio Oiticica e sua bandeira Seja marginal, seja herói. Bandeiras porque a luta é grande, é constante, mas não é triste. É alegre, feliz. É libidinosa, ainda", diz a artista pernambucana Mariana Lacerda.

Ela participa com a videoinstalação Hayu, palavra que quer dizer algo como “limiar”, ou “passagem”, na língua yanomae, falada pelos índios Yanomami. O vídeo exibe crianças brincando na aldeia Demini, na Terra Indígena Yanomami e, segundo ela, “está projetado dentro de uma cabaninha de criança, escondidinho lá dentro, sugerindo, assim, que o trabalho deve ser acessado por crianças – ou por aqueles que se consideram crianças”.

MORADIA SOCIAL
Inaugurada em 2018, no hall de entrada principal do prédio, a Galeria Reocupa visa reforçar o papel da Ocupação 9 de Julho como referência para discussão e reflexão sobre cultura, cidade e sociedade contemporânea por meio da arte. Sua gestão é compartilhada entre artistas, curadores, arquitetos e gestores culturais que atuam em parceria com os moradores da Ocupação e os militantes do MSTC. Quem for conferir a mostra poderá realizar visita guiada com o morador e militante do MSTC Felipe Figueiredo, e também com alguns dos artistas presentes.

Atualmente, a 9 de julho é uma das ocupações mais ativas do centro de São Paulo, com uma rotina semanal de atividades educativas e programações culturais abertas ao público, incluindo almoços mensais oferecidos por chefes convidados junto aos moradores.

Vale salientar que o prédio, onde antes funcionava uma unidade do INSS, é tido como um marco da luta pelo direito constitucional à moradia digna, ocupado há mais de duas décadas – dentro da normativa vigente – pelo MSTC, que atua na mobilização e organização de famílias sem teto e tem como principal liderança Carmem Silva Ferreira.

O mesmo edifício que atualmente abriga 120 famílias – sendo 66 crianças em período escolar – tem sido palco de lutas e eventos importantes, como o Festival Comida de Verdade, em defesa da Feira do MST, e o lançamento do livro O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, revolução e luta feminista, com presença da escritora Silvia Federeci. Recentemente, centenas de pessoas lotaram a quadra da Ocupação para a exibição de Bacurau, cuja projeção foi cedida com exclusividade pela Vitrine Filmes, mesmo estando em circuito comercial.

MARINA SUASSUNA, jornalista e repórter, com especialização em Estudos Cinematográficos. Nascida e criada no Recife, atualmente mora em São Paulo.

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