Curtas

Judas e o messias negro

Longa do cineasta Shaka King indicado ao Oscar foca na narrativa do agente duplo dos Panteras Negras, William O'Neal, e seu envolvimento com o ativista Fred Hampton

TEXTO João Rêgo

11 de Março de 2021

O ator Lakeith Stanfield no papel do agente duplo William O'Neal

O ator Lakeith Stanfield no papel do agente duplo William O'Neal

FOTO DIVULGAÇÃO

[conteúdo exclusivo Continente Online]

William O'Neal é Judas, mas também é um homem negro e norte-americano. Três definições inconciliáveis que habitam um corpo de pele escura. No livro As almas do povo negro (1903), o sociólogo W. E. B. Du Bois teoriza um fenômeno denominado de “dupla consciência”. Ele explica que ser negro e ser um cidadão norte-americano são coisas incompatíveis e conflitantes entre si.

No filme Judas e o messias negro, o diretor Shaka King encontrou na figura de O’Neal, um homem cindido por essência, a mise-en-scène ideal para contar sua história. Ou pelo menos parte dela, a outra estava em Fred Hampton, presidente da filial de Illinois dos Panteras Negras, o “Messias”.

O’Neal e Hampton protagonizaram um dos acontecimentos mais marcantes dos Estados Unidos no século passado. Como informante do FBI, O’Neal se infiltrou no partido dos Panteras Negras, sendo responsável junto ao COINTELPRO (Programa de Contra Inteligência ilegal para lidar com organizações políticas) pelo assassinato de Hampton.

No filme, King se propõe a narrar os acontecimentos do fato, escolhendo acompanhar O’Neal na maior parte do tempo. Seus diálogos com o agente Roy Mitchell, as contradições da sua atuação e o clima que o cercava. Mas Judas e o messias negro não se trata de uma reconstrução histórica parcialmente ficcionalizada, muito menos um thriller de suspense ou uma tragédia com conotações bíblicas. 

Nas cenas iniciais, após um discurso do ex-diretor do FBI J. Edgar Hoover classificando os Panteras Negras como “a maior ameaça à segurança nacional do país”, a câmera viaja para os subúrbios de Chicago, nas costas de um O’Neal trajado de fedora e manta. Ao fundo, a trilha sonora jazzística composta por Mark Isham, Craig Harris e a prolífica dupla de rappers Quelle Chris e Chris Keys, é um prelúdio melancólico à tragédia. 

O personagem entra em um bar ocupado por homens negros e saca um distintivo falso. O’Neal agora é um agente da lei, ou seja, um cidadão norte-americano e não mais um homem de pele escura. A farsa dura pouco tempo, e ele é capturado pela polícia. É a partir daí que outro elemento entra em jogo, quando o FBI condiciona a liberdade de O’Neal a colaboração como agente duplo.

Em entrevista ao Democracy Now, Shaka King falou que tentou realizar uma adaptação de Os infiltrados (2007), de Martin Scorsese, transportado para a década de 60 quando o FBI tinha atuação ostensiva contra grupos políticos nacionais. O problema é que o diretor não tinha em mãos um policial branco, vivido por Leonardo Di Caprio ou Matt Damon, mas uma das figuras mais deterioradas pelas estruturas racistas na história dos Estados Unidos.

Longe de ser um vilão de fato, O’Neal encarnou talvez a representação mais corrompida da teoria de dupla consciência. Um homem negro que se legitimava como falso policial teve a sua liberdade condicionada a atuar justamente contra um ideal que representava a quebra de todo esse clico. Sem futuros possíveis, O’Neal viveu o limbo da autorrepresentação – forçado a encarar um espelho quebrado pelo próprio governo norte-americano. 

King não deixa nada disso escapar, e ninguém melhor que o ator Lakeith Stanfield para representar um personagem tão ambíguo. Juntos, eles conseguem algo que pouco se faz hoje em dia: converter uma história tão politicamente engajada, propícia a verborragia dos nossos tempos, em um filme onde o corpo em cena diz mais que as palavras.

Para contextualizar, a Chicago de Judas e o messias negro é sombria – as externas pela cidade são tão claustrofóbicas quanto as internas dentro de carros, na prisão ou em encontros no restaurante. Soturnas também são as poucas cenas de ação que, mesmo não plasticamente bem construídas, assumem um caráter realista propício a trama. Quando se fala em Panteras Negras, se fala em organização armada, e quando se fala em armas, se fala também no metal que rasga a carne, na banalidade que se tira ou perde uma vida.

 As relações dentro dos Panteras Negras estão no centro da narrativa. Foto: Divulgação

Este, inclusive, é outro acerto que Judas e o messias negro traz na sua construção dramática. Não há tentativas de abrandar o que politicamente eram os Panteras Negras, um grupo marxista, maoísta, revolucionário e que respondia com balas as balas enviadas pela polícia. As ideias eram claras, e elas são explicitadas em cada cena que Hampton se torna o foco, principalmente quando ele realiza seus discursos.

É aí que o “Messias” do título se torna quase uma parte paralela da obra, um fantasma que ronda enfraquecendo o todo. Há uma tentativa de personalizar Hampton, presidente da célula, através do verbalismo. Essa estrutura “messiânica” oculta um fato importante, Hampton era um jovem de 21 anos – o que também é abstraído pela escalação de Daniel Kaluuya para o papel (que venceu um Globo de Ouro como Melhor Ator Coadjuvante). 

Se na primeira vez seu discurso é vacilante, a firmeza nos próximos soa mais como uma cooptação pela construção dramática do filme, do que um recrudescimento dos ideais do personagem. É uma tendência até esperada para um trabalho com apelo comercial que aborda figuras de potencial revolucionário. Ambos os protagonistas são submetidos a uma progressão de consciência. O que diferencia Judas e o messias negro, no entanto, é seu caráter fatalista, e como ele vai lidar com o final antecipado.

Em The murder of Fred Hampton (1971), o cineasta Howard Alk opta pela reafirmação do que foi o revolucionário em vida – contra a martirização, a última cena do documentário carrega a voz dele bradando seus ideais. E 52 anos depois da sua morte, Judas e o messias negro o reverencia:  em sua aparição final, Hampton descentraliza sua figura de liderança para certificar que a luta dos Panteras Negras é atemporal. 

Quanto a O’Neal, mais protagonista do longa-metragem que Hampton, ficamos com suas imagens reais no documentário Eyes on the prize, onde o informante narrou em entrevista todo seu envolvimento no assassinato ao lado do FBI. O véu, como chamou Du Bois o fenômeno que dita as relações raciais nos EUA, caiu – nem transgressão, nem aceitação. Aos 40 anos, O’Neal cometeu suicídio pouco tempo depois de Eyes on the prize ir ao ar.

JOÃO RÊGO é jornalista em formação pela Unicap e repórter estagiário da Continente

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