As referências do grupo vinham de vários lugares, mas especialmente do rap nacional, tanto de uma cena mais consagrada, como também de outros artistas que tensionam as lógicas mercadológicas, construindo seus próprios espaços, como seus contemporâneos da cena musical indígena. “Todos os dias ouvíamos rap: Racionais Mcs, Sabotage, Haikaiss, Matuê, Recayd Mob, entre outros, e também, as músicas dos nossos parentes (os artistas indígenas) Katu Mirim, Brô MCs, Kâe Guajajara e Kandu Puri. Tive a ideia de montar o grupo para mostrar a nossa cultura e realidade. E, principalmente, para defender nossos territórios e nossos direitos. E, assim, começamos a fazer as nossas rimas, fazer trap kuikuro”, comentam.
Através da internet, os Nativos MCs ultrapassam fronteiras e têm, desde o início de 2021, compartilhado seu som com um público amplo, tomando para si o direito à autorrepresentação, através das músicas e do audiovisual. No clipe de Tente entender, por exemplo, eles trazem elementos do cotidiano kuikuro, como a pintura corporal, as celebrações, os banhos e brincadeiras no rio das crianças, ao mesmo tempo em que confrontam o espectador com imagens de invasões de terras indígenas por parte de garimpeiros ilegais, ressaltando os ataques constantes por eles sofridos.
O vídeo enfatiza ainda, através de manchetes de sites de notícia, como o etnocídio indígena é uma prática que continua em andamento no Brasil, colocando os povos originários em constante risco. “Sua lei na nossa terra aqui não vale nada/ Sua constituição aqui já foi largada/ Tantos candidatos em cada eleição/ Promessas, juramentos só corrupção”, dizem, em Tente entender.
Além desta, o grupo disponibilizou, até agora na internet, duas faixas: Sou kuikuro e Trap indígena, esta com participação de Kundu Puri, artista Puri do grupo Teyxokawa, nascido na zona norte do Rio de Janeiro. As canções são do projeto Voa Parente, do selo Azuruhu, que consiste em trocas entre jovens artistas de diferentes etnias indígenas por todo o país, sobre os caminhos na arte e na música.
Esse projeto de estabelecer conexões tem sido fortalecido por indígenas favelados que estão proporcionando as ferramentas para gravação, produção musical e audiovisual para outros grupos e artistas que vivem em aldeias ou cidades. Recentemente, o selo lançou seu primeiro trabalho em álbum, Kwahary Tazyr, de Kaê Guajajara, vencedora do Prêmio Arcanjo de Cultura 2021. “A importância de estar com uma produção Azuruhu é um fortalecimento com parentes que entendem o nosso lugar de fala”, pontuam. “Nossa ferramenta de divulgação são as redes sociais e plataformas digitais e temos novos projetos que estamos tentando viabilizar.”
A rede de cooperação, criação e divulgação de trabalhos de músicos indígenas está em consonância com iniciativas que têm ocorrido em várias linguagens artísticas, como no cinema, nas artes visuais e na literatura, assim como nas universidades e outros campos de produção de conhecimento científico. É o caso de projetos como a Rádio Yandê, a primeira emissora do Brasil feita por e voltada para indígenas na web, com conteúdos educativos e artísticos. Nesse processo, os povos indígenas tensionam os lugares aos quais a arte costumeiramente lhes impõe – o etnográfico, quase sempre folclórico – e expõem as suas subjetividades e complexidades.
Para os rappers do Nativos MCs, a música é uma forma de expressão que os coloca como protagonistas das suas próprias histórias. É, também, um manifesto frente às constantes tentativas de violar a soberania e a integridade das nações indígenas, especialmente em um momento em que as medidas de proteção aos povos originários têm sido atacadas de forma ilegal e também institucional.
MÁRCIO BASTOS é jornalista cultural e mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.