Curtas

Encruza

O projeto é o sétimo trabalho da artista visual Gi Vatroi e conta com o lançamento de um zine digital sobre a sua vivência com o barro em Tracunhaém (PE)

TEXTO Carina Barros

13 de Maio de 2022

Gi Vatroi em processo de produção.

Gi Vatroi em processo de produção.

Foto Gi Vatroi/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

O movimento de retorno é um desafio
águas turvas me convidam 
fechar os olhos 
      sentir 

caminho
até dissolver tudo que vou juntando 
nessas encruzilhadas

(...) 

Gi Vatroi

O resgate das memórias e dos afetos familiares por meio dos álbuns de fotografias deixados pela avó fez com que, durante a pandemia da Covid-19,  a artista visual Gi Vatroi retornasse ao município de Tracunhaém, em Pernambuco, para conhecer mais sobre a sua própria história. E foi partindo dessas lembranças na Zona da Mata Norte que a pernambucana buscou entender de onde vêm as raízes da sua relação com o barro. Daí, nasceu o seu novo projeto: Encruza. 

Encruza surge nesse desejo de retorno. Durante a pandemia, percebi que toda minha família vem dessa zona canavieira, que é essa Zona da Mata pernambucana localizada entre Nazaré da Mata, Paudalho e Tracunhaém. E lá há uma geração, né? Tem meus primos que estão lá hoje e que não cortaram cana, mas meus tios cortaram. Então, é algo que me faz atravessar e voltar para esse território para conhecer a história da minha família e aprender através da  imersão e desse contato com o barro”, conta Gi Vatroi em entrevista à Continente.  

Mestre Val Andrade e Mestra Eliete Pereira ajudaram Gi Vatroi durante o processo de aprendizagem com o barro. Foto: Gi Vatroi/Divulgação 

A imersão resultou em um zine digital com imagens e textos poéticos. Para entender um pouco sobre esse processo criativo que se desdobra através da linguagem artística do barro, Gi Vatroi contou com a experiência e os saberes de dois artistas: Mestre Val Andrade e Mestra Eliete Pereira, referências no trabalho com a cerâmica na região. “Eu produzi muita coisa, foi algo que me surpreendeu bastante e as pessoas que estavam me ensinando, Eliete e Val, fizeram com que eu pegasse a prática rapidamente. São dois artistas incríveis. Então, no projeto, eu me proponho a fazer duas peças; com Eliete eu fiz 25, com Val eu fiz quatro esculturas”, conta. 

Por meio dessa vivência local, a artista criou obras que partem das histórias tradicionais da população, além da experiência que ela agrega durante o fazer artístico em contato com o barro. Nas primeiras produções da série Organismos, por exemplo, ela consegue modelar na argila formas que dão a percepção de movimento para quem contempla a obra. “O que tem me interessado é pensar na coletividade, nesses movimentos, nesses organismos e aprender com eles.”  


A escultura Organismos é um dos primeiros trabalhos da artista. 
Foto: Gi Vatroi/Divulgação 

Já em outro trabalho da série Máscaras, ela constrói peças que partem de diversas interpretações em que as obras têm semelhanças com animais, objetos e orixás. “Depois que eu fiz esse trabalho, a galera olhou  e disse: ‘Nossa, parece uma formiga’, e a partir disso, a gente começou a conversar sobre essa relação com o território de Tracunhaém, que é conhecido como um grande formigueiro, sabe? Eu fiquei bem pensativa, se você perceber algumas máscaras, elas vão ter quase alguns traços que lembram um pouco algum elemento marítimo também, sendo esse lugar da água, do aquoso quase subterrâneo. Também tem uma relação com Oxóssi que é essa flecha que está muito ligada ao nariz das máscaras”, conta Gi.  

Diferente dos seus trabalhos anteriores, como Reflexo encarnado, Corpo político, Afronte, Sal nos olhos, O grito, do grito, do grito e Conversa com as raízes, no Encruza Gi Vatroi se mostra em um processo de amadurecimento, assim como questiona o apagamento arquitetado pela colonização, por meio do desaparecimento de memórias e da identidade de negros e indígenas na região da Mata Norte. “Eu acho que mudo muito nessa caminhada e chego no Encruza transformada. Os meus trabalhos anteriores estão muito relacionados a esse meu artivismo no processo. Além disso, acho que eu vou decantando um pouco esse lugar ativo-político e mergulho na minha poética e subjetividade como lugar que me alimenta, tentando entender para além desse corpo negro”, relata. 


Máscara produzida por Gi Vatroi a partir do projeto Encruza. Foto: Gi Vatroi/Divulgação

No entanto, não se engane que a mudança dessa linguagem estética se deu de forma repentina. Antes de chegar à poética do trabalho Encruza, em Conversa com as raízes, que é um compilado de fotografias dos próprios pés da artista em sedimentos rochosos, ela já apresenta sinais de transformação. É a partir da tentativa de compreender essa subjetividade que durante sua composição artística Gi Vatroi coleta registros da cidade, da família e da tradição do barro em um zine digital, composto por frases, colagem e fotografias em diferentes lugares de Tracunhaém.  

Nesse caminhar, a artista se propõe a ouvir as histórias dos moradores que sentem falta das brincadeiras populares tradicionais, demonizadas pela igreja católica, como o caboclo de lança e os rituais que antecedem o Carnaval. Por meio desses diálogos, Gi Vatroi percebe como se deu alguns apagamentos da cultura e da identidade de um povo. “Eu olho para o processo colonial hoje e consigo perceber o quão curto ele é perto do nosso tempo histórico. Então, o mundo já foi de outras formas, né? A gente já teve outras formas de se organizar, de se estruturar, enquanto cidade, arquitetura e processos políticos. Nós fomos colonizados no conhecimento ocidental branco europeu, mas eu acho que, para além de nós, é sobre a história da nossa comunidade”, contextualiza a artista.

“Para recuperar nossas memórias, eu cito Katiuscia Ribeiro, porque ela é uma pensadora contemporânea que nos convida a pensar caminhos a partir de quem éramos. E que a gente possa pensar em caminhos a partir de outros lugares também. É um pouco do que Krenak nos convida a refletir quando diz assim: ‘Eu não quero fazer parte desse mundo branco, eu não quero um lugar no meio do nada, eu não quero uma escola indígena, eu quero poder continuar a minha forma de vida com a minha comunidade sem fazer parte desse mundo’. Então, isso são coisas que me inspiram e, para mim, esses são caminhos de retorno para além do que eu faço em Encruza, onde tenho feito essa caminhada de lembrar outras coisas também da nossa história.” 

Todo o material da artista está disponível para download gratuito em seu Instagram (@gi_vatroi) e conta com uma leitura com foco na composição não linear e com formato de audiodescrição, no YouTube, para pessoas com deficiência visual. Além disso, os trabalhos de Gi Vatroi também podem ser acessados no site da artista

CARINA BARROS é artista visual, jornalista em formação pela UFPE e repórter estagiária da Continente.

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