Curtas

Emilia Pérez e o fantasma da in(visibilidade)

Indicado em 13 categorias no Oscar, premiado musical francês de Jacques Audiard faz sua estreia no Brasil, sob onda de polêmicas e reclamações dos mexicanos

TEXTO Débora Nascimento

07 de Fevereiro de 2025

Karla Sofía Gascón interpreta Emilia Pérez

Karla Sofía Gascón interpreta Emilia Pérez

Foto Divulgação

Há filmes que nos surpreendem, independentemente de investimento em suntuosas campanhas de marketing. Há outros que, exatamente por isso, geram expectativa. Existem, também, os que provocam expectativa ainda maior devido a polêmicas em torno da obra, opiniões polarizadas na crítica e no público e muitas indicações ao Oscar. Estes três últimos atributos se aplicam a Emilia Pérez, musical que fez sua estreia no Brasil, nesta quinta-feira (6).

O filme, que teve avant-première em Cannes 2024, onde concorreu à Palma de Ouro (perdendo para Anora) e venceu o Prêmio do Júri (o segundo mais importante do festival), já foi exibido no continente europeu, em meados do ano passado. O lançamento chega agora, digamos, atrasado ao mercado latino-americano, provavelmente para evitar uma onda, ainda maior, de haters e “críticas negativas”, que pudessem prejudicar a sua candidatura ao Oscar 2025. Os mexicanos, que já conseguiram assistir ao musical através da pirataria, vêm denunciando, nas redes sociais, a caricaturização do país e de sua população, feita pelo filme, que é “ambientado” no México, mas filmado na França - há tomadas aéreas no país latino-americano apenas para garantir a “autenticidade”.

Outros pontos questionáveis estão na escolha do elenco principal, formado por uma espanhola (Karla Sofía Gascón) e duas atrizes norte-americanas (Zoe Saldaña e Selena Gomez). Estas duas últimas têm ascendências latinas: a primeira, porto-riquenha e dominicana, e a segunda, mexicana, pelo lado paterno. Parece necessário dizer e repetir, aos europeus, que todos esses países têm suas particularidades e mantêm em comum a língua – que, mesmo assim, possui expressões idiomáticas diferentes em cada lugar. O filme não levou isso em consideração. E mais. Em uma entrevista, a diretora de elenco deixou escapar que a produção não conseguiu atores mexicanos adequados. Com direito a falas, há apenas uma atriz mexicana, em um papel secundário e que aparece por poucos minutos na tela.

É curioso que, em meio a essa enxurrada de reclamações, esteja um filme dirigido pelo premiadíssimo e renomado cineasta francês Jacques Audiard, responsável por obras aclamadas no circuito cinematográfico cult, como O profeta (2009), Ferrugem e Osso (2012) e Dheepan (2015), este vencedor da Palma de Ouro, naquele ano. Mesmo que sejam em grande quantidade, essas queixas que circulam nas redes sociais ainda não são os únicos problemas do novo longa-metragem do diretor.

Apesar de ter um excelente plot, Emilia Pérez tropeça em vários aspectos. O primeiro é o roteiro, assinado por Jacques Audiard, Thomas Bidegain e Léa Mysius. A Emilia Pérez do titulo é, ou era, na realidade, Manitas, um traficante mexicano que já havia conquistado dinheiro, poder; tudo, menos ser uma mulher. Para conseguir realizar esse sonho e mudar de vida, coopta uma bem-sucedida advogada (Zoe Saldaña), que ganha, por força de um sequestro-relâmpago e uma enorme quantia em dinheiro, a missão de contactar um cirurgião plástico que aceite fazer a transformação no corpo e no rosto de um criminoso. Para essa nova identidade ser concretizada, é preciso “matar” o antigo homem, aos olhos da sociedade.

Emilia, então, abdica de sua família por um tempo razoável e esse abandono parental não é discutido no filme. É, inclusive, romantizado. Sua “viúva”, Jessi, interpretada por Selena Gomez, e os dois filhos pequenos partem para a Suíça. Ao se transformar em uma mulher, Emilia também muda seu comportamento. Vive uma vida refinada em Londres, até que resolve voltar ao México e lá passa a gerenciar uma instituição para solucionar um problema crônico em seu país: o desaparecimento de pessoas em decorrência da violência dos cartéis do tráfico.

Neste ponto, Emilia Pérez assemelha-se ao seu principal concorrente na categoria Melhor Filme Internacional, Ainda Estou Aqui, que foca sua narrativa na história do sumiço do ex-deputado federal carioca Rubens Paiva. A diferença entre os dois filmes é que, ao contrário do filme de Walter Salles, bem-amarrado, o longa-metragem de Jacques Audiard, em muitos momentos, mostra-se uma desordenado. Não existe uma linha narrativa coesa, firme e com um propósito. As situações simplesmente vão brotando na tela, sem um aprofundamento nos diálogos, nas personagens, nas suas interações e nas próprias situações. O roteiro vai deixando brechas, dúvidas e criando soluções pouco plausíveis para as encruzilhadas da história.

Outro ponto questionável é o fato de que o nome de Zoe Saldaña aparece primeiro nos créditos iniciais e a atriz norte-americana parece ter mais tempo de tela como a advogada Rita Mora Castro, que ajuda Emilia em todos os seus problemas, da cirurgia a dilemas emocionais. Zoe está indicada na categoria Melhor Atriz Coadjuvante e vem levando as premiações da temporada, como o Globo de Ouro. Na última semana, a imagem da atriz norte-americana passou a ser mais utilizada na campanha de lançamento do filme, que agora tenta esconder Karla Sofía Gascón após as polêmicas nas quais a atriz espanhola acabou se envolvendo.

Em uma entrevista de divulgação do filme no Brasil, Karla Sofía pediu, de forma até bem-humorada, que Fernanda Torres a ajudasse a acalmar "essa gente". Segundo a atriz espanhola, os fãs da brasileira estariam cometendo ataques contra ela nas redes, devido à concorrência entre os dois filmes nas categorias Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz. Fernanda publicou, em seguida, um vídeo, pedindo para que os seguidores enviassem apenas mensagens de carinho a Karla Sofía, pois ela a ajudou na festa da revista W, apresentando a carioca várias pessoas convidadas. O problema é que, ainda no mesmo dia, a espanhola também daria entrevista a outro jornal brasileiro, que seria publicada depois, acusando pessoas do entorno da equipe de Fernanda Torres de atacá-la nas redes, como se houvesse um “gabinete do ódio”.

Obviamente, a campanha de um “oscarizável” é tão importante quanto o filme em si. E não foi diferente com Ainda estou aqui. Experiente na disputa, quando concorreu a Melhor Filme Estrangeiro, em 1999, com Central do Brasil, Walter Salles sabe que não basta fazer um bom filme, é preciso não economizar no marketing. Com a forte campanha de divulgação de Ainda estou aqui, Fernanda Torres conseguiu até ser entrevistada no programa de Jimmy Kimmel, um dos mais renomados talk shows dos Estados Unidos. E demonstrou desenvoltura no inglês e na conversa, contando, com muito humor e carisma, até causos, que agradaram a plateia. Mas a criação de uma frente digital de haters é algo fora de cogitação, convenhamos. Trata-se, portanto, de uma acusação grave.

Como se vê, embora Karla Sofía Gascón também tenha um grande carisma, ela tropeça em sua comunicação. Após a acusação leviana contra Fernanda Torres, a jornalista canadense Sarah Hagi descobriu antigos tuítes nos quais a atriz espanhola deu demonstrações de racismo, xenofobia e de críticas ao próprio Oscar, por ter aderido, em edições anteriores, a questões identitárias, como o #MeToo, campanha contra o assédio moral e sexual de produtores contra mulheres na indústria cinematográfica. Tais declarações são contraditórias até por ser Karla uma mulher trans.

Após a revelação dos tuítes, o diretor Jacques Audiard se pronunciou sobre o assunto, nesta semana. Em entrevista ao site norte-americano Deadline, afirmou que são “imperdoáveis” os posts da protagonista de seu filme. No entanto, o próprio diretor foi acusado de ter deixado escapar, em uma entrevista, uma frase, no mínimo, infeliz: “O espanhol é uma língua dos países emergentes, uma língua dos países modestos, dos pobres e dos migrantes”.

Além dessa visão estreita acima, Jacques Audiard, como denunciaram os mexicanos, realmente fez estereótipos do país e de sua população. Uma grande prova está no desfecho do filme, que, enfim, decepciona por não ter sido mais criativo com um plot interessante. Não explorou todas as possibilidades que a premissa oferecia. Por exemplo, não há suspense no fato de que Jessi, a viúva de Manitas, passa a conviver com uma misteriosa prima (a tal Emilia Pérez) do marido morto, que ela nunca tinha ouvido nem falar da existência. Ela não desconfia de nada. Nem os olhos? Nem do cheiro? Nem da maneira de falar? Tudo bem, Lois Lane aceitou que Clark Kent e Superman eram pessoas diferentes…

O que surpreende é uma produção tão cheia de problemas ter conquistado 13 indicações ao Oscar, dentre elas as de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional. Com esse número de indicações, Emilia Pérez chega bem próximo ao máximo já atingido por uma obra cinematográfica, na história da premiação. Os poucos que conseguiram essa façanha foram a obra-prima A Malvada (1950), Titanic (1997) e La la Land (2016).

Ao que parece, o fenômeno Emília Perez, tão propagandeado pela imprensa internacional, pode morrer na praia (sem spoilers), após esse escândalo. O termômetro está na reação do diretor Jacques Audiard. Escândalos anteriores à cerimônia podem influenciar na escolha dos votantes, como parece ter acontecido com Van Morrison na edição de 2022. Antivax, o gênio irlandês não foi convidado para apresentar "Down to Joy” (do filme Belfast) na cerimônia e talvez a perda o Oscar de Melhor Canção para Billie Eilish ("No Time to Die", de 007) tenha sido influenciada por isso.

A propósito, parece ter havido um cancelamento soft, quando, pela primeira vez, o Oscar, em tempos normais (sem pandemia), decide agora retirar as apresentações dos concorrentes à categoria Melhor Canção. Emilia Pérez tem duas músicas na disputa. Aliás, ter transformado essa história em um musical foi uma decisão audaciosa. Musical é um gênero dificílimo. É preciso saber usar bem as músicas durante a narrativa, ter boas composições que complementem o roteiro sem pleonasmos. Além de ter boas coreografias, é necessário ter bons cantores, boas melodias, bons arranjadores. E a trilha sonora de Emília Pérez não tem nada disso. Nem Selena Gomez, que já é cantora, se saiu bem nas interpretações musicais. Será que Jacques Audiard não viu a obra-prima do conterrâneo e xará, Jacques Demy, diretor da obra-prima Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), para saber que pisaria em terreno mais que arriscado?

Karla Gascón não tem uma atuação "monocórdica", como acusou o crítico do Le Monde em relação a Fernanda Torres. Sua interpretação é naturalmente magnética. Por isso mesmo, sua personagem merecia ter tido mais tempo de tela e mais densidade no roteiro. É uma pena que, quando o filme acaba, sentimos falta de vê-la, conhecê-la. A impressão é que Jacques Audiard tinha, com esse filme, uma joia bruta e esqueceu de lapidá-la, porque, ao final, parece que faltaram algumas cenas.

Já Karla Sofía Gascón, se tinha alguma chance na categoria Melhor Atriz, perdeu mesmo essa estatueta provavelmente para Demi Moore, que, no Globo de Ouro, venceu Melhor Atriz de Comédia ou Musical. Fernanda Torres conquistou a categoria vinculada ao gênero Drama. No Oscar, a brasileira tem agora, na protagonista de A Substância, sua principal concorrente.

Embora essa confusão toda com Karla Sofía aumentem, de alguma forma, as chances de Fernandinha chegar perto da estatueta, é bastante desapontador que, na primeira vez que uma atriz trans concorre ao Oscar – e ainda interpretando uma mulher trans –, tenha havido tantas polêmicas, que provavelmente vão prejudicar também a sua carreira a partir desse filme. Este seria o momento de celebrar essa indicação, principalmente, no contexto de retrocesso no campo da política. E é especialmente triste que, quando uma mulher trans brilhava no topo da cadeia da indústria cinematográfica, recaia sobre ela o manto da invisibilidade.

DÉBORA NASCIMENTO
, editora-assistente das revistas Continente e Pernambuco

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