Curtas

Em ‘Sou sua irmã’, Audre Lorde nos traz sua inteireza

Doença, tempos e seus anacronismos, esmagamentos de grupos sociais, tudo isso aparece com uma força imensa no livro que aqui destaco

TEXTO Renata Pimentel

01 de Dezembro de 2020

Audre Lorde

Audre Lorde

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 240 | dezembro de 2020]

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Estamos na aparente reta final de um ano estranho, muito estranho. Talvez seja uma recorrência reclamarmos dos tempos em que vivemos, afinal devemos ser criaturas inquietas para seguirmos guiados pela arte: seja criando, seja fruindo. Mas 2020 chega com uma pitada de déjà vu: repetem-se absurdos políticos, queimadas, destruições e perseguições a comunidades nativas (bem, “já visto” mesmo, porque este mundo ocidental em que se situa o continente, ops, país Brasil foi todo ele colonizado com base em genocídios desde o século XVI, para não remontarmos a mais e mais no tempo e para não complicarmos o caldo com questões orientais).

E ainda o toque de tempero da pandemia pela Covid-19: última grande situação semelhante foi vivida em 1918 (quando a influenza, alcunhada de “gripe espanhola”, assolou, durante dois anos; em seu “arrastão” levou o presidente Rodrigues Alves. Alguns dirão que não se fazem mais vírus como antigamente...). Há excelentes indicações de leitura sobre esse momento de princípio do século passado entre nós.

Mas por que estou tergiversando para adentrar no real ponto? Um livro publicado em 2020 que eu destaque... Retomo: doença, tempos e seus anacronismos, esmagamentos de grupos sociais, seja por etnia, crença, cultura ou qualquer traço de desencaixe à ficção da normatização imposta e suas respostas como estratégias de força, vida, criação. Tudo isso aparece com uma força imensa no livro que aqui destaco: Sou sua irmã – Escritos reunidos, de Audre Lorde (Ubu Editora): “Não é fácil para mim falar com vocês aqui como uma feminista negra e lésbica e admitir que algumas formas como me identifico dificultam que me escutem. Mas nos encontrarmos em meio às diferenças exige flexibilidade conjunta...” (p.13).

Lê-se várias vezes ao longo do livro essa apresentação inegociável: poeta negra feminista lésbica, às vezes a ordem das palavras se altera, negritude, lesbianidade, feminismo e poesia podem tomar a frente na apresentação de si, mas nenhuma das palavras deixa de comparecer: “não sou apenas um fragmento” (p. 79), Audre nos adverte e nos lembra de que também não o somos.


Livro da escritora ativista traz ensaios, conferências e trechos
de diário. Imagem: Reprodução

E é nessa linha de inteireza que caminham todos os textos desta coletânea. Mas por que uma poeta morta em 1992 tem seus textos, enfim, dados à luz em nossas terras somente no século XXI? O primeiro deles saiu apenas em 2019, também uma seleção de ensaios e conferências e, neste ano, saem este sobre o qual se escreve agora, além da primeira publicação de poemas de Lorde em português. A resposta à pergunta anterior pode estar em vários sinais: a brevidade de sua vida (morreu aos 58 anos); a contundência de seus textos dos quais não se sai ileso: apesar de muito acessíveis (Lorde realmente escreve buscando ser compreendida), as suas palavras complexificam os debates sobre gênero, feminismo, orientação sexual, etnicidade, poesia, ensino, corpo, política e vida.

Neste livro, encontramos uma série de ensaios, conferências e trechos de um diário que a poeta manteve nos últimos anos de vida; todos restavam inéditos e somente em 2009 foram publicados em inglês. O legado de escritos da poeta e pensadora integra a coleção do Spelman College, em Atlanta (USA), de onde vêm sendo organizados em publicações póstumas.

Sou sua irmã está dividido em três partes: na primeira, são textos de palestras ou intervenções diante de audiências as mais diversas, em eventos aos quais foi convidada para falar dos temas que pautaram sua vida (absolutamente intrincada à sua produção em todas as vertentes) e sua militância: as pelejas contra machismo, racismo, homofobia em que desperta seus ouvintes/ leitores e abre olhos até de tantos outros militantes de que “não podem existir hierarquias de opressão” (p. 63), porque “uma opressão não justifica a outra”(p. 86).

Ela, como mãe, lésbica em uma relação inter-racial, poeta, professora, negra, feminista, socialista, ativista e pensadora tem todos os pontos de interseccionalidade articulados para lúcida e agudamente afirmar: “É um padrão do cinismo direitista encorajar integrantes de grupos oprimidos a agir uns contra os outros, e, enquanto estivermos divididos por causa de nossas identidades específicas, não poderemos nos unir numa ação política efetiva. (...) Não posso me dar ao luxo de acreditar que estar livre da intolerância é somente direito de um grupo específico. Tampouco posso me dar ao luxo de escolher as frentes nas quais devo lutar contra essas forças de discriminação, onde quer que elas apareçam para me destruir. E, quando elas aparecerem para me destruir, não demorará muito até que apareçam para destruir vocês” (pp. 64-65).

Seguindo a organização do livro, a segunda parte traz as reflexões de Lorde em uma verdadeira aplicação da pedagogia queer (tão importante e discutida hoje), ou seja, como a poesia (a literatura e a arte) é sua arma de conhecimento e construção de mundo para o combate constante às opressões; por isso, afirma: “não lidar com a própria vida na arte que produzo é cortar a fonte da minha força” (p.82).

Sua escrita é potente e imagética, poética em todos os momentos e essa coerência se reflete na terceira parte, um pungente diário de seus últimos anos vivendo com câncer (primeiro de mama, em 1978, e depois no fígado, em 1984). Há momentos e frases que cravam fundo retinas e corpos de quem lê; são originais das décadas de 1970 e 1980, que seguem absolutamente urgentes, lançando perguntas e considerações das quais não podemos fugir: “Como a erosão sistemática das liberdades é gradualmente executada?” (p. 37).

Não há respostas prontas e definitivas, há pautas que implicam não abrir mão da radicalidade complexa da vida, eis o que nos deixa em legado Audre Lorde neste livro que chega ao Brasil neste ano para nos advertir do óbvio: “sou uma lésbica negra feminista guerreira poeta fazendo o meu trabalho, e parte do meu trabalho é perguntar: vocês estão fazendo seu trabalho? (...) Vocês estão herdando um país que se tornou histérico com a negação e a contradição” (p.57).

Estamos nos EUA de 1989, estamos no Brasil de 2020: no caleidoscópio do tempo que inicia esta resenha, seguimos revivendo. Coincidência? Em 2020, também é relançado o livro Contra a interpretação, ensaios fundamentais da pensadora Susan Sontag, originais dos anos 1960, também lésbica, também morta em decorrência do câncer, branca como a ex-companheira de Lorde (Frances Clayton, professora de Psicologia). Corram para ler essas mulheres! 

RENATA PIMENTEL, professora de Literatura da UFRPE.

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