Curtas

Em nome da América

Junto ao livro ‘5 temas sobre o filme’, documentário que narra a presença dos EUA durante a ditadura militar está encartado na edição de julho da Continente

TEXTO Marina Pinheiro

01 de Julho de 2021

Material de arquivo e entrevistas atuais compõem o filme 'Em nome da América'

Material de arquivo e entrevistas atuais compõem o filme 'Em nome da América'

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 247 | julho de 2021]

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Espiões em terras estrangeiras, agentes infiltrados ou viajantes ingênuos. Na década de 1960, boatos envolviam a presença de norte-americanos que pareciam “cair do céu” em Pernambuco: desempenhando trabalhos voluntários, como a aplicação de vacinas em crianças, ou acompanhando debates sobre as reivindicações de trabalhadores do campo, esses estrangeiros pousavam nas “exóticas” terras brasileiras inserindo-se em um ambiente político e social complexo. As especulações sobre os motivos dessas presenças resultavam não apenas de uma desconfiança natural, mas das ações da ditadura militar que se estabelecia no país e no contexto de uma América Latina pós- Revolução Cubana vigiada por muitos olhares, sobretudo, estadunidenses.

Foi nesse mundo em disputa que John Kennedy discursou na Casa Branca, propondo aos embaixadores um plano de financiamento para os países da região. O ano era 1961, quando ele anunciou a “Aliança para o Progresso”, programa que prometia destinar 20 bilhões de dólares aos países ao sul do continente. Mas não sem ressalvas, pois os recursos eram acompanhados por planos “à americana” para os rumos dessas nações.

Diretor Fernando Weller aparece em frente à câmera, com os braços cruzados. 
Fernando Weller dirigiu o 'doc' cujo tema foi tratado também em livro. Imagem: Clarissa Dutra/Divulgação e reprodução (capa)

No documentário Em nome da América (96 min, 2017), dirigido por Fernando Weller, é possível ouvir a declaração do então presidente no primeiro aniversário do projeto: “Aqueles que impossibilitam as revoluções pacíficas farão com que uma revolução violenta seja inevitável”. O longa-metragem, junto com o livro 5 temas sobre o filme Em nome da América – composto de cinco artigos relativos à presença dos Estados Unidos nesse período da nossa história, em Pernambuco – está encartado nesta edição da Continente, como um presente aos nossos assinantes e sócios do Clube de Leitura.

Os anúncios de outras revoluções já eram propagados pelo Nordeste e fortalecidos com revolta por vozes como a de Francisco Julião, advogado do município de Bom Jardim que emergia como liderança das Ligas Camponesas. Os movimentos populares se faziam dissonantes aos interesses norte-americanos e do governo militar brasileiro, pedindo reforma agrária e oferta de serviços públicos para os trabalhadores. E foram justamente eles que conviveram com voluntários americanos vinculados aos Corpos da Paz, agência federal dos EUA na qual o filme mergulha. E traz, a partir de imagens históricas, uma visão sobre a política externa do país e seu impacto sobre nós. Os “gringos”, inspirados por ideais de voluntariado, oposição ao comunismo ou fuga da Guerra do Vietnã, que transformava jovens em engrenagens bélicas, aterrissavam em solo pernambucano para desempenhar trabalhos de todos os tipos.

Sobre isso, Fernando conta: “É um momento rico, onde há muito conflito, mas também figuras que são emblemáticas. (...) A gente está tentando dar conta do papel que essas figuras tiveram, não só nos anos 1960, mas como construção de uma ideia de nação que estava posta e foi completamente frustrada pelo golpe militar de 64. O filme é só um aspecto dessa história, que não se esgotou, porque continua até hoje. Essa história das relações de influência, cooptação e sabotagem envolvendo os Estados Unidos e o Brasil segue até os dias atuais”.

As práticas do voluntariado apresentam contradições que refletem a própria sociedade estadunidense. Escapando dos maquinários da guerra, à qual vários dos entrevistados trazidos pelo filme se mostram contrários, serviam ao mesmo tempo a uma tentativa de reconstrução da imagem americana como país de propósitos solidários, encobrindo os efeitos das ações no Vietnã. Já o financiamento concedido pelos EUA, com uma promessa de fomento a ideais democráticos, alimentou o governo Castelo Branco enquanto este cassava mandatos de deputados opositores e reprimia militantes contrários ao governo.

Voluntária dos Corpos da Paz, ajoelhada, vacina bebê no colo de mulher sentada. Pessoas à esquerda observam a cena da porta de uma casa.
Cena do documentário 'Em nome da América' mostra momentos de atuação dos voluntários. Imagem: Reprodução

O contraste entre os supostos ideais dos Corpos da Paz e as consequências da sua atuação levanta mais perguntas do que respostas em debate sobre a intervenção americana no Brasil. A esse respeito, a produtora do doc Carol Ferreira destaca a importância da constante rememoração: “É uma política sistemática, e que a gente tende a esquecer muito rapidamente”.

Realizado a partir de vasta pesquisa, o documentário remonta à influência da Igreja Católica, das peças de propaganda divulgadas pelo governo JFK e da própria imprensa na desarticulação dos movimentos sindicais brasileiros. Estes aspectos do filme foram aprofundados no livro 5 temas sobre o filme em nome da América, reunindo os tópicos em artigos como Nem inocentes, nem úteis: os voluntários da paz no Brasil, escrito por Cecília Azevedo, que abre os textos analisando as motivações e influências dos voluntários. Também estão presentes artigos de Felipe Loureiro, Jessie Jane Vieira de Sousa, Vandeck Santiago e do próprio diretor.

Produzido sob o impacto das transformações que vivemos desde junho de 2013, Em nome da América não enfoca os caminhos que trilhamos desde então, mas diz muito sobre como chegamos até eles.

MARINA PINHEIRO é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.

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