São momentos de dança, do corpo que baila sob o magnetismo de sua própria gravidade. De uma ousada performance artística que cutuca as pessoas dispotas a vê-la. De uma conversa em que o interlocutor mira a câmera, e assim nos encara, no conforto do descanso em sua rede. São instantes em que vemos um homem jovem sentado em uma praça pública, onde montou uma banquinha para conversar sobre HIV e Aids; registros de um espetáculo teatral em que a sexualidade é debulhada sem pudor; ou a captura da expressividade imagética e subjetiva da presença de Micaela Cyrino, artista e educadora, uma mulher negra que interpela a sorofobia vigente com um sinalizador pendurado em seu corpo e uma simples frase: eu não vou morrer.
Micaela Cyrino em cena do longa. Imagem: Vitrine Filmes/Divulgação
Por que é preciso, ainda, lembrar à sociedade que o diagnóstico da soropositividade não é mais, jamais, uma sentença de morte? O pernambucano Fábio e o paulistano Gustavo (Lembro bem dos corvos), acertamente, abrem Deus tem AIDS com imagens de arquivo - reportagens antigas de televisão cujas locuções em off acentuam que "AIDS, um fantasma para o homem moderno, uma doença que mata" ou ainda que o "inimigo avança, não poupa mulheres, nem crianças" e, como não poderia faltar, "o vírus da AIDS nasceu na promiscuidade sexual". E, ao longo da narrativa deste documentário que estreou no formato online no 10º Olhar de Cinema, em outubro de 2021, e depois esteve no 29º Mix Brasil e no IDFA - International Documentary Filmfestival Amsterdam, rebatem, por meio da força argumentativa, da presença física e da lucidez de seus personagens, esta argumentação estapafúrida e falida que, no entanto, ainda se faz perceber.
Em 2017, quando publicamos o dossiê A vida com HIV nas páginas da Continente #204, Fábio foi um dos entrevistados e assim discorreu sobre o projeto então denominado VHS HIV, assim pensando para, justamente, iluminar as memórias sombrias dos anos 1980, tempo em que a apresentação estigmatizada do "o câncer gay" ou da "praga gay" era recorrente na mídia. "As imagens de arquivo dos anos 1980, de revistas, telejornais e dramaturgia, estão em VHS, sujeitas a fungos e ações do tempo, assim como os corpos doentes daquela época, assolados pela magreza, por aquelas manchas da pele, pela toxoplasmose. Hoje em dia, o digital é cristalino e tudo está numa nuvem, assim como o vírus é quase uma virtualidade. As pessoas estão perfeitas, possuem a informação de que têm o vírus, não se vê doença alguma nos seus corpos, se estiverem em tratamento não transmitem o vírus. Mas, ainda assim, nós, como sociedade, não damos as condições para que elas escolham contar ou não contar que vivem com HIV. É muito estigma”, argumentava o realizador.
É compreensível, pois, que o filme adote um tom incisivo contra a sorofobia, esse pavor completamente descabido de quem vive com HIV. Porque hoje, quando I = I (indetectável = intransmissível, ou seja, se for baixa a contagem das cópias do vírus por cada célula CD-4, onde se aloja, o HIV fica indetectável no organismo, logo a pessoa não o transmite) e todo o tratamento em solo brasileiro segue sendo custeado e viabilizado por meio do Sistema Único de Saúde - SUS, é inadmíssível perpetuar um preconceito arraigado em lógicas de quatro décadas atrás.
Sim, é verdade, estamos em novos tempos e a própria existência de uma obra cinematográfica com este título afirmativo é prova e reflexo disso. Porém, ainda em 2022, há quem pense e difunda que pessoas com HIV merecem ser escanteadas ou tratadas como párias. O que fazer com elas? Levá-las ao cinema para ver Deus tem AIDS, este golpe brutal e necessário para refutar crenças abomináveis, urdido com a delicadeza da partilha, com o acolhimento e a reverberação dos relatos e a assertividade das imagens.
Cartaz do documentário. Imagem: Vitrine Filmes/Divulgação
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.