Karina Buhr é uma das artistas brasileiras mais inventivas da atualidade. Basta escutar alguns segundos de sua discografia ou assistir suas ácidas performances para reconhecer a identidade que a cantora imprime em cada verso. Com naturalidade, a também poeta, compositora e percussionista brinca com as palavras e com o senso comum permeado nas relações humanas. Em Desmanche (2019), seu novo e quarto álbum, a artista, com quase 30 anos de trajetória, dá continuidade ao tom político construído em Selvática (2015) e consegue ser ainda mais assertiva.
Na primeira música, Sangue frio, o rufar dos tambores anuncia a potência de um álbum catártico, rodeado por gritos de denúncia, palavras de ordem e momentos mais introspectivos, essenciais para retomada de consciência. Distante das fórmulas mercadológicas, Desmanche, “do imperativo de desmanchar e também do desmanche político”, como explicou Karina, em entrevista à Continente, consegue criar, em suas 10 faixas, uma atmosfera punk, bem-temperada pela diversidade cultural das sonoridades brasileiras e pela diversidade dos problemas sociais arraigados no país, além da forma como essa mistura é – ou não – engolida pela população.
Influenciada pela riqueza rítmica e cultural do Nordeste, onde cresceu sob a influência das tradições musicais populares, tocando percussão em grupos como a Nação Estrela Brilhante do Recife e Piaba de Ouro, Karina Buhr entrega, sem perder a acidez característica, um álbum mais próximo da sonoridade da Comadre Fulozinha, banda formada em 1997, da qual fez parte. “Tudo que faço nos meus discos é proposital. Em Desmanche, quis dar lugar de destaque para a percussão, sem usar a bateria, e como era isso que fazia na Comadre Fulozinha deve vir daí a lembrança. Mas a forma disso em Desmanche é bem diferente de lá, por causa das construções rítmicas e das divisões da poesia falada e cantada serem outras”, pontuou.
Acompanhado do “punk de tambor”, como Karina gosta de chamar, Desmanche se desdobra em versos mais agressivos, responsáveis por trazer à tona temáticas como intolerância religiosa, violência policial, crimes ambientais, entre outros problemas, além de versos que soam como um sopro de coragem, muito bem-anunciados pelo lirismo dos violões. Em A casa caiu, por exemplo, a poesia escancara a impunidade e cobra por respostas diante da tragédia ocorrida em Brumadinho, “autuar com multa não serve/ das mãos do ferido/ esses vermes/ não podem mais escapar”.
Em contraste, na faixa seguinte, Peixes tranquilos, a artista, filha de Oxumarê, visita as águas de um “rio vivo imaginário, de outra dimensão”, evocando a sabedoria e poder feminino de Oxum, rainha dos rios, “pedrinhas embaixo/ polidas por Oxum/ amor nas mãos/ peso nenhum”. O álbum ainda conta com a participação da cantora Isaar França, ex-integrante da Comadre Fulozinha, nos irônicos versos de Vida boa é a do atrasado, e do rapper Max B.O., em Filme de terror, um dos pontos altos da obra. “Algumas músicas eu tinha há um tempo, umas colagens de poesias do meu livro Desperdiçando rima (2015/editora Rocco), melodias e ritmos criados em cima dessas colagens. Outras são de agora.”
A urgência e intensidade presente nas rimas afiadas, necessárias dentro do conturbado contexto político e social, também foram características da construção do álbum. Para se ter ideia, Desmanche, já disponível em todas as plataformas digitais, foi gravado em apenas cinco dias. E, para Buhr, que durante o processo de criação se volta para dentro de si, tudo faz mais sentido quando as ideias são colocadas para fora. “É sempre bom botar as ideias na rua, perceber que tem gente que escuta, pensa, sente o que a gente escreve, compõe, toca e canta. É muito bom ouvir as pessoas falando do que sentiram, observá-las e sair circulando com um show.”
THAÍS SCHIO é estudante de jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.