Desculpas pelas quais
Exposição dos artistas pernambucanos Heitor Dutra e Marcela Dias ocupa a Garrido Galeria
TEXTO João Rêgo
17 de Agosto de 2021
Heitor Dutra, 'Confeitaria Paradisa Bombons e Rocamboles', acrílica s/ tela, 100 x 100 cm
Imagem Divulgação
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Cores, texturas, vestígios, mesas, animais e toboáguas. Desde 23 de julho, a exposição Desculpas pelas quais ocupa a Garrido Galeria, no Recife, com o universo pictórico distinto dos artistas pernambucanos Heitor Dutra e Marcela Dias. Entre eles, o desejo de experienciar a pintura como um ato manual e contínuo de olhar o mundo.
O próprio título nasce como uma tentativa de justificar as pulsões que os unem. São “desculpas” para exercerem a liberdade criativa e exporem suas obras lado a lado, criando proximidades ou distinções entre seus métodos autorais.
“O que mais podemos especular a partir deste diálogo?”, questiona Guilherme Morais, editor da revista Propágulo e um dos curadores da exposição. Através do seu texto curatorial, compreendemos que a relação entre Heitor e Marcela se estende também para a trajetória artística de ambos – com partilhas e confluências de procedimentos e técnicas (em 2017, foi com Heitor que Marcela experimentou o giz pastel oleoso e, em 2021, ela fez parte do ateliê coletivo Pangeia, onde ele é residente).
Essas informações mínimas, e a própria característica enigmática das pinturas, abrem campos semânticos múltiplos. Resta a nós, como testemunhas, o estranhamento e a organização de sensações individuais produzidas a partir do contato com as telas. Algo menos focado em decodificar sentidos, e mais em uma experiência de embarque.
É também por isso que Desculpas pelas quais carrega um importante trabalho de expografia. Sem tentar unir as obras em amarras conceituais, a concepção do espaço nos convida justamente a adentrar num local suspenso por um potencial imaginativo. As duas paredes que refletem o eixo de entrada e saída foram pintadas num lilás flor-de-gerânio, cor de família tonal presente nos trabalhos de ambos os artistas.
Marcela Dias, sem título, 2021. Óleo s/ tela, 30 x 40 cm. Imagem: Reprodução
“As paredes assumem um lugar de entidades ao tentarem erguer o diálogo entre os trabalhos, tensionando e expandindo os espaços. Bordas infinitas e quebra de centralização – como o enfileiramento de obras que atravessam as quinas – são alguns dos elementos dispostos com o intuito de sustentar a relação iminente de aproximação”, escreve Steve Coimbra, curador da Garrido Galeria e fundador da agência e produtora de artes visuais Phantom 5.
Neste cenário, Heitor e Marcela podem exercer suas individualidades criativas e produzir pinturas que estabeleçam relações diversas (com significações que não se findam nos liames).
Artista plástico e performer, formado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Heitor Dutra busca preencher a amplitude do quadro com elementos variados: animais, cores, toboáguas, piscinas, prédios e palavras. Há uma impressão de desarranjo deliberado, mas tudo nasce do próprio processo da feitura da obra.
“Eu realmente estou pensando em transmitir uma sensação, mas isso passa pelo racional, o pensamento e a organização, e também passa pelo inconsciente, de se permitir e se entregar à sensualidade da pintura, da tinta, que tem muito haver com a coisa táctil, dessa materialidade”, ele explica.
Heitor Dutra, Volta às aulas em Majorelle, 2021. Acrílica s/ tela, 70 x 70 cm
Heitor Dutra, A surpresa em azul da Prússia e Iogurte, 2021. Acrílica s/ tela, 20 x 30 cm. Imagens: Reprodução
As próprias frases que aparecem nas telas se tornam menos um caminho para decifrar significados ocultos (cuidado que ele diz ter tomado) e mais um elemento visual, como são os cisnes, as orcas ou uma Airfryer.
Heitor conta também que as lembranças da infância – dos parques aquáticos com o pai, da mãe e avó costureiras, do gosto pelas artes decorativas – são elementos que o marcaram. Se há uma aproximação nostálgica, ela passa por uma reinvenção inventiva das referências estéticas. Uma espécie de colagem livre, que surge naturalmente na relação que o artista nutre com a pintura.
Esse universo imagético é exibido em uma proposta que estabelece encadeamentos heterogêneos com a totalidade da obra (que também traz uma construção magnífica de profundidade, além de outros elementos, que vão surgindo e atiçando novos sentidos a cada revisita à tela).
“Eu fico pensando depois que comecei a pintar, que tem haver com isso da nova natureza, uma natureza sob controle, um paraíso artificial. Mas aconteceu alguma coisa que deu errado, porque tudo aquilo foi feito por pessoas, mas elas não estão presentes. É uma ausência que é preenchida por seres de outras espécies, que tomaram conta e fizeram uso daquilo da maneira deles”, ele diz.
“Penso nisso em um momento posterior, mas tudo começa por um interesse plástico: eu quero pintar a cor da água porque acho lindo e me lembra coisas muito boas, como o prazer, lazer e férias.”
Por outro caminho, Marcela Dias trabalha com figurações e abstrações. Copos, mesas e cadeiras localizam as obras no interior do ambiente privado. Os elementos são mínimos, enquanto a tonalidade das cores, em suas camadas, se sobressai na tela.
Marcela Dias, sem título, 2021. Óleo s/ tela, 30 x 30 cm. Imagem: Reprodução
“Eu estava muito em busca de representar alguns espaços e criar essa ideia de solidão. E, na exposição, o espaço vai se desintegrando, porque eu comecei a pegar muita intimidade com o material, no caso, a pasta. São algumas figurações que me acompanham desde o início, mas acho que também vem com o desenvolvimento de uma inteligência a partir da minha mão”, ela explica.
Se a pouca quantidade de símbolos parece simplificar possíveis significações, as pinturas de Marcela são as que mais propõem espaços de ficcionalização. São os rastros de pessoas que, possivelmente, estavam presentes ali, rabiscos de escritas (com a inventiva utilização de um poema de Ana Martins Marques), além de uma dimensão visual que brinca com a nossa percepção espacial.
Entre as possíveis relações, vêm à lembrança alguns dos filmes da cineasta belga Chantal Akerman, em especial O quarto (1972) e Toute une nuit (1982), obras interessadas em entrelaçar a geometria dos ambientes internos, a noite e uma certa ideia de introversão intrínseca a esses espaços cotidianos. É interessante pensar que, se o plano de Akerman está ligado à tradição de uma longa exposição (o slow-cinema), o trabalho de Marcela também carrega uma dilatação temporal no seu produto final.
“É um pouco demorado porque eu vou construindo camadas de pintura. Eu não consigo fazer uma tela com uma camada só, então eu dedico muito tempo nela”, conta. Assim como em Heitor, as obras de Marcela assumem as marcas dos procedimentos que elas passaram até serem concluídas – o tempo, os rascunhos, as camadas sobrepostas.
No final, ambos, estarão conjugando universos particulares, mas que dizem respeito ao artista e ao prazer do seu ofício. Enfim, uma exposição para ser vista e revista em busca das suas infinitas impressões.
Desculpas pelas quais vai até 4 de setembro, com visitação de segunda a sexta, das 10h às 19h, e, aos sábados, das 10h às 14h. Mais infos: @garridogaleria
JOÃO RÊGO, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.