Esse fato nos remete ainda a um outro, conhecido como o "holocausto brasileiro", cenário de extermínio que fez parte do maior hospício do país, o Colônia, em Barbacena, Minas Gerais, retratado no livro da jornalista Daniela Arbex. Foram 60 mil mortes provocadas pelo frio, fome, sede e até eletrochoque. Epilépticos, alcóolatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas dos patrões, moças que perderam a virgindade antes do casamento, ou simplesmente pessoas diferentes que "ameaçavam" a ordem pública, sujeitadas a uma internação sem critérios médicos, tendo seus direitos mais básicos violados. Mas por que muitos de nós não temos conhecimento desses dois casos?
Mais do que uma reflexão sobre as tentativas de higienização social ocorridas no Brasil do século passado, é um alerta para algo que se repete nos dias de hoje. Esse foi o mote que fez o coletivo Ponto Zero, integrado pelos baianos Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé e Lucas Lacerda e a pernambucana Brisa Rodrigues, montar a peça Curral grande, dirigida pelo também pernambucano Eduardo Machado, em cartaz na Caixa Cultural Recife até o próximo sábado (22/9). "Fomos morar no Rio de Janeiro e passamos a buscar uma obra que nos impulsionasse para a primeira montagem do grupo, algo que acreditássemos ser relevante e que trouxesse uma urgência para o cenário em que vivíamos, tanto no Rio quanto no Brasil. Ou seja, uma obra que dialogasse com as nossas necessidades enquanto artistas, cidadãos e políticos", conta Lucas em entrevista à Continente.
Foi aí que o grupo relembrou de uma dramaturgia que tiveram contato durante a graduação na Universidade Federal da Bahia, junto com Eduardo Machado. Resultado da dissertação de mestrado de um professor deles, o pesquisador e dramaturgo Marcos Barbosa, o texto se tratava justamente sobre os "currais do governo" no sertão do Ceará. Recuperaram essa leitura e foram atrás de Eduardo, surgindo assim o convite para a montagem de Curral grande. Os ensaios se iniciaram em 2014, no período dos preparativos para a Copa do Mundo e as Olimpíadas que seriam sediadas no país. Ao presenciarem a remoção de famílias pobres que "sujavam" a "cidade maravilhosa", o grupo fez um paralelo com a tentativa de higienização social da nossa história que dá tema à peça. "É uma coisa que acontece muito em grandes eventos, quando a gente quer mostrar a cara do Brasil. Mas qual é a cara que o Brasil tem pras pessoas de fora e pra nós mesmos?", questiona o ator Carlos Darzé.
Histórias alinhavadas na trama acontecem ao longo de 1932. Foto: Rafael Medeiros/Divulgação
A encenação parte da dramaturgia de Marcos Barbosa – que tem a proposta de criar um drama histórico brasileiro no modelo do teatro épico, inspirado no renomado Bertolt Brecht, numa estrutura que faz uma proposição realista –, mas opta por uma montagem que possibilita quatro atores darem vida a mais de quarenta personagens, havendo uma preocupação de como se colocar em cena e de como tratar sobre um tema doloroso, que precisa provocar uma reflexão, mas que ao mesmo tempo nos prenda num jogo narrativo. São microencenações dentro de uma grande encenação. Cada uma das tramas tem uma estética particular e se interliga com as demais entre o entretenimento do século passado, como a radionovela, o cinema mudo, ou até mesmo numa referência aos quadrinhos. Desse modo, a peça vai se encaminhando num jogo de abertura para a trama seguinte.
Tendo como foco a segunda fase dos "currais do governo", considerada a mais radical pela quantidade de pessoas presas nos campos, as oito histórias acontecem ao longo de 1932, indo desde o interior do Ceará, numa casa antiga de fazenda, até um campo de concentração próximo à capital. É um panorama histórico tratado de forma diferenciada, numa tentativa de renovar o interesse do espectador. "Da construção realista à caricatura, do teatro épico narrativo à contação de história", como pontua o diretor Eduardo Machado.
Curral grande nos mostra que fazer arte, nos dias de hoje, é ser político. Num país que costuma não ter memória, resgatar episódios como esse serve não apenas para revelar que as feridas ainda estão recentes, mas principalmente para atentar que, de fato, temos aberto outras novas. O espetáculo pode ser conferido às 20h, nesta quinta e sexta, e às 18h e 20h, no sábado. Quem assistir ao espetáculo amanhã (21/9), terá a oportunidade de participar de um bate-papo com os atores após a apresentação. Os ingressos custam R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.