Curtas

Crianças selvagens

Estruturas patriarcais, relacionamentos, sexo e política são temas do segundo álbum de rap de Hot e Oreia

TEXTO Thaís Schio

02 de Outubro de 2020

Novo trabalho foi produzido durante a pandemia

Novo trabalho foi produzido durante a pandemia

Foto Paulo Abreu/ Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 238 | setembro de 2020]

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de um ano após o lançamento do irreverente Rap de massagem – que até mesmo em seu título já estabelecia a relação jocosa com o rap de rimas mais sérias, ou “de mensagem”, a dupla mineira Hot e Oreia retorna à cena com Crianças selvagens, expandindo o universo debochado e underground do primeiro álbum para falar sobre estruturas patriarcais, relacionamentos, sexo e política, entre outras temáticas de maneira leve e desconstruída, como somente uma criança selvagem seria capaz de fazer. Com direção de Daniel Ganjaman, produção assinada por Rafael Fantin, beats do Tropkillaz, Vhoor, Coyote e Deekapz, o disco conta com 10 faixas e algumas participações especiais de artistas como Black Alien e Naty Rodrigues.

“É uma evolução do nosso trabalho, no sentido de que a gente amadureceu e está tentando achar essa criança interior, que é, na verdade, a pessoa amadurecida, porque a criança é que tem sabedoria. Também pelo fato de a gente se sentir criança até hoje, já somos adultos, mas ficamos zoando o tempo todo. É sobre encontrar o passado para amar o presente que é essa doideira”, explicou Oreia, em entrevista descontraída para a Continente. “Nós somos crianças selvagens aqui na cidade, tanto que, quando fomos compor o disco, a gente correu para a roça do Oreia”, complementou Hot, sobre o período de produção do segundo disco. Embora tenha começado a esboçar seu formato em São Paulo, com a faixa Domingo, o disco ganhou contornos mais delineados no interior de Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha, onde Oreia, Gustavo Rafael Aguiar, o “gangster da roça”, nasceu em 1992, com poucos dias de diferença de Hot, Mario Apocalypse do Nascimento, o “bruxo do teatro”.


Extra:
Assista a show da dupla e conversa no back stage durante ação especial da Continente no Rec-Beat 2020



Apesar de ter nascido em Belo Horizonte, capital mineira, Hot também compartilha de imagens afetivas pelo selvático. Isso porque parte de sua família, formada por marionetistas, passava temporadas inteiras vivendo no interior de Lagoa Santa, fazendo dinheiro “das galinhas, dos alfaces, pensando nos espetáculos para colocar em prática na cidade”, contou Hot, que, apesar de ter se apaixonado pelo rap ainda na adolescência, teve sua estreia artística nos palcos do Giramundo, grupo de teatro de bonecos fundado por seu avô Álvaro Apocalypse.

Como se não bastassem as coincidências familiares e astrológicas (ambos sagitarianos com ascendente em Peixes), eles começaram a frequentar cedo, com apenas 15 anos, o Duelo de MCs, atualmente a maior batalha de freestyle do Brasil, e foi por lá que se conheceram. Amizade à primeira vista: “Eu tinha dread, roupa colorida. Hot superestranhão, do candomblé, teatro. A gente não se enturmava e acabava se apoiando um no outro. Zoavam da gente e a gente deles”, relembrou Oreia. “Esse trem da gente se abraçar e se beijar desde pequeno e não ter essa coisa de machão nas roupas, comportamentos e ideias sempre foi característica nossa”, continuou, explicando sobre a dinâmica da dupla que, apesar de ter ganhado maior visibilidade recentemente, já vinha inovando através da criação de espaços como o Sarau Viralata, também frequentado pelo rapper Djonga, cuja participação especial na música Eu vou, ainda do primeiro álbum Rap de massagem acabou viralizando na internet.



“A gente acredita muito no que faz, é tudo que a gente tem. As nossas famílias ficavam doidas. Eu larguei a escola, o Oreia também. De lá para cá, foram muitas viagens de carona e shows que rendiam petiscos e cerveja”, compartilhou Hot, em tom de brincadeira.

Agora, neste segundo trabalho, desenvolvido durante a pandemia, os rappers contam que as motivações vieram não só do momento político atual, mas das mudanças interpessoais ocorridas no hiato entre os discos. Nos mudamos de casa por causa da grana do primeiro álbum, estamos namorando sério, coisas que a gente nunca tinha feito”, contou Oreia. Para Hot, que em breve será pai, o relacionamento romântico é o aspecto mais marcante do disco novo. “A gente está se descobrindo, quebrando a cara, completamente entregues para fazer direito e não repetir o que os nossos pais fizeram. Não é nada forjado, a gente está vivendo tudo isso e todas essas coisas da vida cotidiana são muito sérias, por isso esse disco ficou mais sério.”

A música Presença, por exemplo, embalada por trechos da música A tua presença morena, lançada por Caetano Veloso em Qualquer coisa, disco de 1975, revela o momento apaixonado dos artistas. Já na música Papaia, o sexo é assunto central, mas a temática não aparece acompanhada da visão machista e opressiva, tão comum dentro da indústria fonográfica, mas como uma maneira de também falar sobre liberdade e equidade de gênero, afinal de contas, sexo é política. Papaia, inclusive, já conta com videoclipe responsável por adicionar uma dimensão não heteronormativa à sua narrativa. Além disso, a faixa também contou com a participação especial do carioca Black Alien (Planet Hemp) que, de acordo com Hot, “é o maior rimador do Brasil. Antigamente era só o que a gente ouvia, numa época em que o Oreia trabalhava entregando umas roupas que a família dele vendia. A gente gravou com um ídolo e viramos amigos”, comenta rindo.



Além de patriarcado, amor e sexo, o candomblé também aparece através de Oxóssi, faixa solo de Hot em homenagem ao seu orixá e aos mais velhos, responsáveis pela sua formação desde menino dentro do terreiro. Oreia também não fica de fora e se arrisca sozinho nas aliterações da música Ela com P. Nas outras faixas, muita personalidade, texturas e subversão, características ainda mais evidentes quando associadas à leitura do livro Caos, terrorismo poético e outros crimes exemplares, do americano anarquista Peter Lamborn Wilson, inspiração original para o título do disco, já disponível nas plataformas de streaming.

THAÍS SCHIO é jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco.

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