Curtas

Costuras para fora

Ana Squilanti lança livro de contos, no qual narra sutilezas do cotidiano

TEXTO Taynã Olimpia

03 de Agosto de 2020

'Costuras para fora' é o livro de estreia da autora

'Costuras para fora' é o livro de estreia da autora

Foto JULIANA LUBINI/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 236 | agosto de 2020]

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“Costura-se para fora.” Em alguns bairros brasileiros, é comum encontrar, nas fachadas das casas, plaquinhas com esses dizeres. É uma forma de costureiras oferecerem seus serviços e atrair clientela. De forma não premeditada, a frase também conjura outro significado, a possibilidade de costurar para fora, de deixar à mostra as costuras, que costumeiramente ficam escondidas nas roupas. Com as peças de vestuário sendo montadas pela trama secreta de fios que unem e colocam tudo no lugar. E, para vê-los, só virando ao avesso.

Costuras para fora é um livro que vem subverter essa lógica tradicional de esconder aquilo que une as partes de um inteiro. Porém, os 21 contos presentes na obra não são sobre tecidos, linhas e agulhas. São sobre as tenuidades da vida, o cotidiano em curso, escritos por meio de uma ótica voltada às miudezas banalizadas que suturam os acontecimentos. Alguns contos são curtos, para uma tragada só. Outros exigem um pouco mais de fôlego de leitura. Funcionam, assim, como doses homeopáticas de literatura. Até porque sua autora, Ana Squilanti, antes de se encontrar na escrita, é farmacêutica de formação. “Eu via a cura através de um remédio. Mas acho que uma história serve como remédio para gente”, ela diz à Continente, ao falar da guinada em sua carreira.

Remédio esse que Ana imprime em 144 páginas de uma edição delicadamente montada graficamente, nas quais estão elencadas histórias, personagens e perspectivas plurais, de várias texturas, acabamentos e cores. Isso, graças à escrita criativa da autora, que se atém a trazer significado para cada elemento da narrativa, desde o cenário até os diálogos curtos. Ler Costuras para fora é uma experiência de descobertas e despedidas a cada novo capítulo. De conhecer novas narrativas ao dar adeus a outras. É como se deparar com os finais sem pontos, e aprender a se relacionar com existências em reticências. E, mesmo ficcionais, os contos carregam veracidade capaz de promover identificação do leitor com uma ou mais histórias.

“Eu acho que todas as personagens têm um pouco de mim. Mas tomei cuidado para que elas não fossem todas eu. A riqueza das histórias está na capacidade dos protagonistas em ver o mundo. E, mais importante até que o caráter da personagem, é saber como ela se encaixa nos eventos. Então, houve uma preocupação minha de fazer com que as personagens não fossem iguais, de trazer contradição entre elas”, comenta Ana Squilanti. Ela menciona também a individualidade de cada conto, que independe da leitura dos demais para ter sentido completo; porém, a sequência sugerida pela organização do livro foi pensada visando à melhor experiência de leitura, respeitando nichos temáticos e oscilações de humor.


A autora de Costuras para fora, Ana Squilanti.
Foto: Paloma Bertissoli/Divulgação

Os contos estão sutilmente conectados uns aos outros – seja através da repetição de personagens ou objetos. O livro começa por Sem costura, que conta o breve encontro de duas conhecidas em um ateliê de costura. Olhando de relance, a situação poderia ser algo banal. Mas a forma com a qual a narrativa é transmitida permite ler nas entrelinhas, escutar o dito pelo não dito através de um jogo inteligente de palavras e significados. Jogo esse que se repete ao longo de toda a obra, até o último conto, intitulado Nós. E vemos que, assim como na prática da alfaiataria, aquilo iniciado “sem costuras” se finaliza em “nós” – sutileza que expõe o zelo na montagem da obra.

Nenhum conto extrapola 10 páginas, não significando baixa densidade dos seus conteúdos. Porque é pela destreza e olhar detalhista da autora que o livro ganha profundidade. Cenas cotidianas viram palco para discussões sobre patriarcado, machismo, assédio, sexualidade, amor, amizade e autodescoberta. Destaque é o conto Bonita de rosto, um dos mais longos, que discute a existência subjugada e reprimida de corpos fora do padrão. Em Eu me comportei bem esse ano, deparamo-nos com um pedido silencioso de uma criança por atenção e ajuda, após vivenciar evento traumático. Já em Quem os postes iluminam surge a discussão sobre LGBTfobia e o medo de demonstrar amor em público.

Os protagonistas se alternam entre homens, mulheres, jovens, crianças e idosos. Possuem diferentes orientações sexuais, com personalidades e vivências distintas. Os contos reunidos em Costuras para fora fazem um apanhado representativo do ser humano. E uma leitura superficial da obra deixaria escapar sua perspicácia. “Eu quis falar de questões que geralmente se escondem, mas que estão quase na superfície. O livro materializa tentativas de compreensão”, dessa forma, a autora, que estreia com segurança de veterana, sintetiza a mensagem principal do livro. Lançado no início do ano pela editora Nós, Costuras para fora é fruto do Edital de Estreantes da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.

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EXTRA: Costuras para fora incorpora elementos da vida da autora, como seu apreço pelo álbum conhecido como O disco do tênis (1972), de Lô Borges, que inspirou o conto Não se apague essa noite. Leia na íntegra esse capítulo do livro aqui (PDF).

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