Curtas

Correnteza/Labirinto

Perceber-se enquanto cidade

TEXTO Taynã Olimpia

27 de Julho de 2022

A instalação 'Chuva' compõe 'Correnteza/Labirinto'

A instalação 'Chuva' compõe 'Correnteza/Labirinto'

Foto Marlon Diego/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Chamei um amigo da zona sul para ir comigo, uma cria da zona oeste, a um museu da zona norte. O objetivo foi conhecer uma exposição que fala do Recife, município que abraça todos esses pontos geográficos. “Um resumo da cidade”, ele me respondeu quando perguntei o que havia achado da exposição. Tive que concordar. A arte presente em Correnteza/Labirinto é capaz de unir (e debater) geopolítica e as belezas escondidas pelos cantos da metrópole. Até o dia 19 de agosto, quem entrar no Museu Murillo La Greca recebe um convite para aguçar os sentidos e sentir uma Recife reconstruída pelas mãos de dois artistas que a vivem.

Barulhos de motor, buzina de moto, alarmes e atrito do pneu no asfalto recepcionam os ouvidos dos visitantes. A responsável por trazer a atmosfera da rua para dentro do museu é a instalação montada por duas caixinhas de som – daquelas comumente encontradas com transeuntes recifenses – apoiadas em cima de tijolos de concreto, que, com ajuda de fios, parecem flutuar na sala. Mas, até descobrir a origem dos sons, é preciso caminhar e encontrar outras obras. Além de instalações, pinturas, poesia e fotografias fazem parte da montagem.

“A gente utiliza coisas reais da cidade”, menciona Tacio Russo, artista que assina a exposição junto com Milla Serejo. Em entrevista à Continente, eles contam que os materiais usados para criar as obras foram encontrados enquanto caminhavam pelo Recife. “Justamente por usarmos as coisas de verdade, acabou que muito teve que ser feito no improviso na hora de montar. Foram materiais que, quando chegamos na galeria, tivemos que readaptar”, relata Milla.


Os artistas Tacio Russo e Milla Serejo. Foto: Marlon Diego/Divulgação

Exemplo disso é a obra Capibaribe doméstico, na qual a água do rio está dentro de um aquário com fundo espelhado. “A gente não tinha ideia da cor que iria ficar”, confessa a artista, “ficou super amarelo, achamos até meio feio, tipo: ‘olha a cor dessa água como é’. Mas a obra era essa, não tinha o que fazer.” Em se tratando do Recife, onde campanhas socioambientais clamam pela limpeza dos corpos d'água, a obra, de fato, não poderia ser diferente. O amarelado da água sinalizando urgências reais.

Por ser um dos pilares da exposição, o elemento água volta a aparecer em outras peças. Não apenas sua presença estática, mas, sim, representações dos seus efeitos na urbe – principalmente nos bairros mais socialmente vulneráveis. A goteira que insiste em cair pelas telhas Brasilit está na obra Chuva, uma instalação que remete a um telhado de telhas quebradas, onde no meio está uma bacia de metal aparando a água. Logo ao lado, na parede, a poesia chega para relacionar corpo d’água ao corpo-gente com a frase “Ser afluente/ Permear territórios”.

Já em Maquete, Tacio e Milla põem sobre o mapa do Recife um monte de barro, retirado de uma barreira desmoronada, com lona de contenção em um dos lados. A terra, propositalmente, cobre algumas informações cartográficas e impossibilita que alguns bairros sejam localizados. Uma maneira intrigante de forçar o olhar para uma cidade onde uma parcela da população se aglomera em morros e teme a chuva. Realidades que, tradicionalmente, não são retratadas em mapas.



A obra Maquete utiliza barro retirado de uma barreira desmoronada. Foto: Marlon Diego/Divulgação

Em solo firme, a atenção recai sobre duas obras montadas nos mesmos metros quadrados: embaixo está a Cidade vulnerável, e acima fica a Pedagogias do chão II - Vintém. Sobre a primeira, Tacio explica: “A ideia é trazer ruínas da cidade e intercalá-las com espelhos, numa lombra meio eu-lírica de se perceber enquanto cidade, como ser humano frágil. É a história de Narciso trazida para a metrópole.” Já a segunda obra foi uma forma de trazer a comunidade do Vintém – localizada próxima ao museu – para dentro da exposição através de frotagens do chão.

É curioso Correnteza/Labirinto falar do ambiente urbano sem precisar retratar pessoas, nas obras estão apenas vestígios delas. Figuras humanas estão presentes só em algumas fotografias que compõem a interativa Mini-atlas-urbano, onde, através de perguntas e um embaralhado de imagens, se lê o imperativo “crie sua própria cidade”. É reorganizando os itens disponíveis – ou criando novos com o papel e caneta – que os visitantes contribuem e se tornam, também, parte da exposição.

Durante o tempo que está em cartaz, Correnteza/Labirinto reverbera para seu território de entorno, com ações que visam aproximar a população vizinha e o Murillo La Greca. É o caso da atividade planejada com o projeto Ameciclo (um dos apoiadores da exposição) para montar, junto aos ciclistas que frequentam a região, uma cartografia que registre os trajetos de bicicleta de outros bairros até o Vintém.


Na parede, a poesia "Ser afluente/ Permear territórios". Foto: Marlon Diego/Divulgação

Nos minutos que passamos dentro da galeria, foi possível se deparar com as nuances da capital pernambucana e contemplar suas construções/rachaduras. Seja vindo da zona norte, oeste ou sul, a visão de quem caminha, pedala, respira e vive o território foi fundamental para montar (e compreender) esse quebra-cabeça artístico, urbano e afetivo que a Correnteza/Labirinto propõe ser. “Crie sua própria cidade”, eis o convite feito.

A visitação ao museu Murillo La Greca é gratuita e ocorre das terças às sextas-feira, das 10h às 16h.

TAYNàOLIMPIA, jornalista em formação pela UFPE.

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