Curtas

Contos exploram o inacabado e o imprevisto

'Não, não é bem isso', livro de Reginaldo Pujol Filho com produção de 2008 a 2017, remete a um "Borges do século XXI" segundo Sérgio Sant'Anna

TEXTO Gianni Paula de Melo

24 de Setembro de 2019

Detalhe da capa de 'Não, não é bem isso', de Reginaldo Pujol Filho

Detalhe da capa de 'Não, não é bem isso', de Reginaldo Pujol Filho

Foto Luísa Zardo/Divulgação

 

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Depois de três publicações que surgiram a partir de projetos bem definidos, o novo livro de Reginaldo Pujol Filho, intitulado Não, não é bem isso, reúne textos escritos entre 2008 e 2017, que à primeira vista parecem não se relacionar entre si. Embora seja precisa a explicação do autor de que existe nesse trabalho uma “unidade da diferença” ou uma “reunião pela diversidade”, não é como se você estivesse diante do cardápio de um daqueles restaurantes que servem churrasco, sushi e pizza. Ao contrário, é possível pontuar algumas questões que parecem centrais na organização desse livro, ainda que elas falem mais de uma prática que de um estilo.

Não, não é bem isso, como o próprio título sugere, explora tanto o descontentamento permanente do escritor com seus resultados quanto a imprevisibilidade como eixo narrativo. Um traço que parece atravessar esses contos & experimentos é justamente a incompatibilidade entre uma expectativa criada – do personagem, do leitor, do escritor, em torno de um gênero – e aquilo que de fato se realiza na narrativa. Essa quebra de expectativa é, com frequência, trabalhada a partir das engrenagens do humor, ora flertando com o nonsense, ora abrindo espaço para uma crítica social. A minha impressão inicial, diante desses textos, era a de quem tem a sua frente um laboratório cuja função é testar muitos modos de se produzir frustração e surpresa. Curioso que isso seja feito a partir de textos “antigos”, dos quais mais da metade já haviam sido publicados, o que também nos leva a entender Não, não é bem isso como um exercício de montagem que performa a variedade e o imprevisível.

Para ilustrar essa questão, podemos pensar nos contos Ideias que podem aparecer na cabeça de um sujeito sentado em uma cadeira, Krov u rot e Uma frase para a posteridade. No primeiro, é explorada a expectativa sobre a possível ação de um personagem, e, nos demais, as expectativas dos próprios personagens, que precisam, de certo modo, improvisar diante do que a vida lhes oferece: um livro pretensioso que alcança sucesso na condição de literatura de vampiro para jovens ou o absurdo de herdar uma frase. Esse jogo do incompatível, do imprevisível, talvez seja um elemento narrativo que perpassa todo o livro publicado pela Não editora, que traz uma orelha assinada por Sérgio Sant’Anna, para quem esse lançamento remete a um “Borges do século XXI”.

Essa escrita chama atenção pela habilidade para “abrir muitas abas” ou “inserir muitos parênteses”. Uso esses termos para descrever a proliferação de imagens e conteúdos que irrompem e interrompem outras imagens e conteúdos em um fluxo que pode imprimir certa dificuldade sintática, mas que, cada vez mais, não significa um desafio cognitivo. Aqui me permito uma digressão para pensar como a leitura de certos textos que trazem esse traço frenético, como um desdobramento do fluxo de consciência tão explorado desde fins do século XIX, nos quais passamos de um pensamento ou ação a outro sem que o primeiro esteja necessariamente concluído, se tornou cada vez mais familiar e orgânico. Arriscaria relacionar, em termos de hipótese, que isso está diretamente associado ao modo como consumimos linguagem nos meios tecnológicos. Assim, o cérebro parece achar textos que comungam desse caráter fragmentário e veloz cada vez mais prazerosos. Mas essa é uma questão para neurolinguistas e não para especuladores.

O que posso afirmar sobre essas “muitas abas” abertas na narrativa de Pujol Filho é que elas também nos levam a pensar nas decisões tomadas por um ficcionista, naquilo que ele opta por criar. Embora Não, não é bem assim dê atenção ao social a partir dos temas de algumas histórias, a sua contribuição política mais potente é, justamente, esta: mostrar que quando eu opto por contar uma história, eu também estou decidindo quais histórias não serão contadas – ao menos, neste momento. Não quero sugerir que essa é uma reflexão que move a obra como projeto, afinal, como já foi dito, o livro não deriva de qualquer estrutura a priorística ou, muito menos, de uma orientação retórica. É a forma como se realiza, no entanto, que gera essa inquietação.

O conto Helicóptero, elefantes, Emília, John, ou Paul, ou George, Ringo não ilustra bem esse aspecto, pois é o caso mais agudo de um conto que a toda hora nos lembra daquilo que narra e do que deixa de fora: “...os elefantes são bem mais antigos que os helicópteros e até do quê a Emília, seja a da tevê, seja aquela do Sítio. Eles descendem dos mamutes. Mas não vou falar de mamute, senão vamos parar na pré-história”; ou ainda “se estivéssemos piegas, ela surgiria na história através das cartas enviadas para seu distante e aguerrido noivo ‘Querido John, ou Paul, ou George, Ringo não’, e ele leria choroso as cartas, talvez pilotando o seu Dumbo e, distraído pelas lágrimas, o bravo e estúpido soldado, choroso e saudoso e ainda por cima lacrimoso, perderia o controle do Dumbo e cairia sobre a mata, em meio a uma manada de elefantes, num final trágico e sem graça. E a história acabaria aqui. Portanto, sem cartas, sem lágrimas, sem tragédias (se é que é possível haver guerra sem tragédia)”.

Há sempre razões práticas e contextuais naquilo que escolhemos contar, mas há, como sabemos, as motivações subjetivas e as inconscientes. Esse texto sublinha a todo momento que existem outras histórias possíveis na medida em que integra ao seu próprio esqueleto uma pista do que foi descartado. Mesmo que maturado em águas cômicas, Não, não é bem assim nos diz da responsabilidade das escolhas de um escritor e se oferece como um elogio da imaginação. Sabe-se que, em tempos devastadores como o que estamos vivendo, imaginar outros mundos é um modo de resistir à barbárie, pois que toda nossa lama também é a colheita da pobreza imaginativa de um povo diante do seu drama.

No conto, O que não saberemos, Pujol Filho narra o início das férias do presidente russo Vladimir e tenta imaginar o modo como esse líder delibera sobre a vida e a morte, os bastidores do poder a que nunca teremos acesso: “Não sabemos é se, ao jantar, infelizmente acompanhado por sua futura ex-esposa e mais infelizmente ainda por um assessor que insistiu em lhe trazer um relatório ao vivo dizendo que Sim, os soldados continuam dando batidas no casco e que Sim, há ofertas de ajuda inglesas e norueguesas com capacidade para tentar o resgate, o que não sabemos é que Vladimir desgostoso pela falta de sal ou pelo excesso de informações no jantar, disse, sorrindo ou nem tanto, Não se fala mais em resgate, quem entra para o exército sabe que terá que se sacrificar pela pátria”. A empatia, então, se revela uma grande extravagância, e se colocar no lugar do outro não convém se o outro é meu subalterno.

Quando a consciência da limitação se torna insuportável, sobretudo quando as intenções dos que detém o poder são obscuras e particulares, é justamente aí que o desejo da criação mais precisa vigorar. Não está fácil para os escritores, não está fácil para os leitores, não está fácil para quem não escreve nem lê. E o papel da arte e da imaginação, quando tudo mais está amargo e cruel, é como o da “arca que não é casa e não é floresta e tem que fingir ser mundo e esperança”.

GIANNI PAULA DE MELO,  jornalista, mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e arteterapeuta em formação.

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