Quando a gente lê Caderno de mergulho, de Juliana Leite, facilmente entra na viagem, ou meditação autodirigida, da personagem Iaiá, que trabalha empilhando frutas numa mercearia, mas que pratica mensalmente sua transcendência ao deitar no sofá, ligar o ventilador e tomar banho de Lua, mergulhando no mar profundo de sua imaginação sensual. Claro que estamos falando de uma filha de Iemanjá encantada pela voz da sua sereia interior.
Além dessas, há outras histórias bem-urdidas e interessantes, como a que Gustavo Pacheco escreveu para Exu (Crisálida), Itamar Vieira Júnior criou para Iroko (A devoção sagrada de uma semente) e Paula Gicovate, para Omolu (O menino que insistiu).
A maioria dos 18 contos é criativa no enredo e convencional na estrutura textual – linear e com pendor realista, mas alguns deles quebram positivamente esse padrão, trazendo uma prosa fragmentária, disruptiva e/ou poética. Chamam a atenção, neste sentido, Cara ou coroa, de Carlos Eduardo Pereira; Caçar, pescar, de Marcelino Freire; Xangôs, de Fabiana Cozza; e Homenagem ao professor, de Edimilson de Almeida Pereira.
Cozza é cantora e compositora, Edimilson, poeta. É provável que a prática de ambos na lírica tenha favorecido isso, mas é bonito ler “Mas como haveria de contrapor-se à superioridade do letramento, da canetada de alguém diplomado? O pensamento de regresso ao sertão da Serra da Canastra e às lâminas cristalinas do Velho Chico. Ali tudo era céu e livros vivos: joão-cipó, lagarto-teiú, curicaca, seriema, tamanduá-bandeira, veado-campeiro, o rasqueado da colher de pau no tacho de barro fazendo farinha, torrando café, as peneiras num caxixi separando as sementes da terra. Escola de menino era vereda”, numa das passagens de Xangôs.
Do mesmo modo, a linguagem de Edimilson vai encantando a gente, no seu texto para Oxalá. “Envelheci dentro da velhice: me dispersei como o fumo nos telhados. Desisti e me refiz nesse lugar onde o fim e o princípio lutam no mesmo umbigo” é uma frase que se soma em sua riqueza ao trecho: “As noites brancas, a ilha branca – o sol, esse legado de clareza: tudo me envolve, porque participei de tudo. Se um ramo de ora pro nobis se recorda de mim, quando tateia minha língua – se alguém acorda comigo no pensamento –, estou vivo”. E tem mais tantas outras dessas, numa história, por si só, cheia de revelação.
Enquanto as histórias de Fabiana e Edimilson enlevam, as de Marcelino (para Logun-Edé) e Carlos Eduardo (para os Ibêji) aterram, nos lembram as asperezas da vida, em estruturas textuais que emulam claramente seus argumentos.
Ainda vale mencionar, para finalizar, o recurso editorial bem-sucedido de oferecer pequenas biografias dos orixás ao início de cada conto, familiarizando os leitores com suas principais características. Além do texto, essas páginas são ilustradas com desenhos de Antonio Gonzaga, com as figuras de cada uma dessas divindades. Uma leitura que abre caminhos para conhecermos um tanto desses fabulosos orixás.
ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da revista Continente e professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.