Chão de estrelas, série em sete capítulos que estreia no dia 10 deste setembro, no Canal Brasil e na plataforma Globoplay, pode ser descrita de várias formas: é mais uma produção da Carnaval Filmes, de João Vieira Jr. e Nara Aragão, mais uma criação do roteirista e diretor Hilton Lacerda, mais uma obra a explorar os vínculos, e as linhas de fuga, entre cinema e teatro, mais um produto audiovisual que, embora concebido e feito para televisão, traz a expressividade da linguagem cinematográfica e mais uma janela para visibilizar o talento de jovens atrizes e atores pernambucanos e nordestinos. E pode, acima de tudo, ser definida como uma luz na penumbra: filmada em novembro e dezembro de 2019, foi finalizada neste ano, na vida sob a pandemia, assim irrompendo como um sopro de esperança.
Porque nos episódios a palavra resistência é articulada por todos os acontecimentos que atravessam a trupe que dá título ao seriado, um coletivo teatral composto por Irineu (Gustavo Patriota, de Fim de feira, longa-metragem mais recente dirigido por Hilton), Thelma (Nash Laila, de Deserto feliz, de Paulo Caldas, e Amor, plástico e barulho, de Renata Pinheiro), Veludo (Matheus Félix), Ériko (Dante Olivier), DepreSílvio (Mário Sérgio Cabral, do grupo Magiluth), Eneida (Ana Paula Gaspar) e Sônia (Uiliana Lima), sob a batuta de Adão (Giordano Castro, também do Magiluth).
Eles moram/ensaiam em um casarão, nas proximidades do Mercado da Boa Vista e, logo no capítulo inaugural, ficamos sabendo que tanto incursionam pelas suas memórias, usando as lembranças como combustível dramatúrgico, como que irão enfrentar a fúria do neoliberalismo de urbanismo predatório. Isso porque o terreno da casa onde moram, pertencente à família de Dionísio (Paulo André, de O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes), foi vendido para uma construtora pouco afeita à arte e afins.
Será que a ideia da resiliência, do corpo que se impõe como armadura e se transforma em munição na luta política do cotidiano, vem de Tatuagem, filme de Hilton de 2013 sobre uma companhia de teatro também chamada Chão de estrelas? “Na verdade, a única coisa que liga o filme à série é o nome”, responde o realizador, que aqui divide a direção com Milena Times.
“Chão de estrelas surge mais pela vontade de trabalhar com as duas linguagens, cinema e teatro, do que fazer uma série que fosse uma espécie de continuação. Não me parecia muito excitante retomar tudo aquilo, e, sim, poder ter um grupo de teatro e falar do contemporâneo. Era quase uma provocação a partir disso, sabe? Para criar essa leitura. A filmagem do Chão foi um pouco antes da pandemia, acabou quase no fim de 2019, e acho que a gente quis fazer uma leitura sobre muitos núcleos que existem, sobre o lugar da arte, quando ela vai para uma esfera mais periférica, de observação. Tem a ver, também, com a noção daquele grupo como um lugar onde se concentra uma quantidade de ideias muito fortes e em como aquelas pessoas vão defender seu espaço, em uma troca engraçada, enquanto vamos construindo uma narrativa em cima da memória da cidade, daquela casa e delas próprias”, emenda o diretor.
Nas palavras do produtor João Vieira Jr., essa “resistência à opressão” também se espelha de outras formas à medida que a narrativa avança. “Na crise que se instaura, aquelas pessoas vão usar as ferramentas de que dispõem para enfrentar a situação, para se contrapor, e ocupam aquele espaço com muita resistência. São personagens que vão convivendo, ao longo dos episódios, com o racismo da polícia e com a conivência de instituições conservadoras, como a Igreja e a elite econômica pernambucana. Vejo que a série promove essas intersecções calcadas na formação cultural do nosso Estado”, observa João.
O que Chão de estrelas preconiza, no que se enquadra na fotografia de Ivo Lopes Araújo (Tatuagem), se encadeia na montagem de Natara Ney (que editou Lama dos dias, série que Hilton dirigiu com DJ Dolores, exibida no mesmo Canal Brasil em 2018) e para além das câmeras é a força do afeto. Vários nomes nos créditos são “figurinhas repetidas” das produções anteriores da Carnaval Filmes ou das obras dirigidas por Hilton Lacerda, o que dá a sensação, dentro e fora das cenas, de coesão, parceria, intimidade.
“Rodamos a série com recursos de uma chamada pública do Fundo Setorial do Audiovisual e depois complementamos com o Funcultura. Foi um orçamento de R$ 2,6 milhões para 5h50 de material, que é como se fossem três longas-metragens. Filmamos em cinco, seis semanas. Não foi fácil, não”, explica a produtora Nara Aragão. Ante um horizonte de incertezas, tal qual o que se deslinda nas veredas ficcionais, é preciso celebrar, sempre, o milagre de apostar na arte e dela erigir uma trupe, uma série, uma cidade, um país.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.