Curtas

Azougue Nazaré

Filme pernambucano entra no circuito de cinema depois de passar por festivais

TEXTO Luciana Veras

06 de Novembro de 2019

Cena do longa dirigido por Tiago Melo

Cena do longa dirigido por Tiago Melo

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 227 | novembro de 2019]

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Em janeiro de 2018, o primeiro longa-metragem do realizador pernambucano Tiago Melo era exibido na mostra Bright Future, no Festival de Rotterdam. Exaltação, aplausos, prêmios e o início de uma trajetória que, ao longo de todo o ano passado, levaria o filme para países diversos. Curioso que só agora, em novembro de 2019, dê-se o lançamento comercial dessa ficção que enfeixa cana-de-açúcar, maracatu rural e conflitos entre religião e tradição. Avalizado pela recepção no estrangeiro, respaldado por importantes festivais nacionais, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Azougue Nazaré entra em cartaz com distribuição da Inquieta e “como um filho que decide dar a volta ao mundo e depois retorna para casa”, nas palavras do seu diretor.

E retorna com a força da sua proposta estética e também com a reverberação política da sua história. No enredo, encenam caboclos de lança que mais parecem assombração ao desaparecer, pastores evangélicos que, movidos por uma rigidez cega, conclamam seus familiares a rechaçar o maracatu e a constante tensão entre os amantes do secular folguedo e aqueles que nele percebem a “obra do demônio”. Com o Maracatu Cambinda Brasileira na condução narrativa, Azougue Nazaré se ambienta na cidade de Nazaré da Mata, na Zona da Mata Norte de Pernambuco.

Seus personagens espelham as tensões que se estabelecem em lugares onde há tentativas de repressão a manifestações de matriz africana. O casal Catita (Valmir do Coco) e Darlene (Joana Gatis), por exemplo, esconde um do outro o que faz quando não estão juntos: ele sai escondido no maracatu, ela é uma fervorosa devota do pastor evangélico local (Mestre Barachinha), que por sua vez abandonou o folguedo e hoje dedica boa parte do seu tempo a exortar qualquer pessoa, inclusive seu filho Edilson Silva, a sair das vias demoníacas e abraçar o evangelho.

“Tinha um desejo de fazer uma crítica, não à religião evangélica nem aos evangélicos em si, mas ao intuito de dominação de algumas igrejas e líderes neopentecostais. Essa pluralidade toda do Brasil não pode ser reduzida a uma só verdade, que começa com a defesa da família tradicional brasileira. A meu ver, a tradicional família brasileira são os índios, pois a sociedade indígena é muito igualitária, sem nada a ver com isso que estão pregando. Outro aspecto é que a cultura não pode ser anulada pela religião. O maracatu é uma arte de resistência, está aí há muitos anos e não pode ser enquadrada ou liquidada por um pensamento midiático. Como podemos abrir o olho para o que está acontecendo? Isso é um caso de intolerância religiosa também, sabe? O maracatu vem de uma religião de matriz africana. Então, quando a igreja ou alguém ligado a ela diz que o maracatu é do demônio, não fala só do maracatu, mas de todas as religiões africanas, todos os mitos e reis e rainhas, ou seja, algo muito mais sério do que apenas uma dança ou folclore”, explica Tiago Melo à Continente.

Ele torce para que o ágil, vibrante e elétrico filme que escreveu, produziu e dirigiu “não vire um ataque aos evangélicos, para que justamente os evangélicos venham ver o filme, e não decidam repudiá-lo como se fosse uma coisa do demônio”. Faz sentido sua firme posição, pois 2019 não difere tanto de 2018 no quesito polarização e acirramento. Contudo, o primeiro ano da presidência Jair Bolsonaro avança em sua cruzada contra a cultura: fake news, ataques à arte, censura a peças teatrais e desmonte a galope da estrutura de fomento e difusão do cinema fazem parte de uma estratégia de governo.

Isso tende a potencializar Azougue Nazaré. Porém, o próprio filme se impõe, ao questionar a propagação de um discurso de intolerância do pastor evangélico – que, em jogada de craque do diretor, é vivido por Barachinha, ele, sim, um dos mais importantes mestres de maracatu em atividade no Estado – e demarcar o pensamento do maracatu como uma trincheira de resistência, lume da cultura em tempos de obscurantismo.

Alinhavada com elementos do cinema de gênero (quais seriam os superpoderes de um caboclo de lança?), a narrativa deslancha, também, por meio da entrega dos atores e do compromisso que Tiago Melo em construí-la de forma mais verdadeira possível. Ele tem raízes ali: sua avô materna nasceu em Nazaré da Mata, ele ouviu muitas histórias de Zé de Carmo, falecido presidente da Cambinda Brasileira, e, em um primeiro momento, pensou em rodar um documentário.

“Cheguei lá para fazer um documentário para Encantaria, uma série sobre religião. Fui fazendo a pesquisa, conhecendo as pessoas e foi me dando uma vontade muito grande de fazer uma ficção. Percebi o potencial de interpretação das pessoas do maracatu, os artistas incríveis acostumados com câmera desde muito novos. Desde cedo, todo mundo dá entrevista, é filmado e se apresenta; então, essa desenvoltura já é bastante evoluída. Fui vendo que eu não estava sozinho nesse desejo de fazer uma ficção.”

De fato, se há um sentimento que atravessa quem vê Azougue Nazaré, é essa “não solidão”, a pujança da coletividade, o vislumbre de que unidos somos capazes de ultrapassar obstáculos. “O filme foi feito com inspiração na garra das pessoas do maracatu. É um filme de resistência, de guerreiro. É como um maracatu feito a muitas mãos: muita gente acreditou, embarcou nessa história e trabalhou pesado para que tudo pudesse acontecer”, define Tiago Melo.

LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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