Curtas

As travestis que tinham São Paulo aos seus pés

TEXTO Laura Machado

02 de Maio de 2023

Elenco da Medieval, em meados de 1970, primeira boate abertamente gay de São Paulo

Elenco da Medieval, em meados de 1970, primeira boate abertamente gay de São Paulo

Foto Acervo Pessoal Kaká Di Polly/ Companhia das Letras/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 269 | março de 2023]

Assine a Continente

Toda história tem muitos lados. Este é o delas.” Essa é a frase que abre as páginas de Rainhas da noite – As travestis que tinham São Paulo a seus pés, do jornalista Chico Felitti (Companhia das Letras, 256 pp, 2022). Em uma obra com traços biográficos sobre Jacqueline Blábláblá, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan, três das mais importantes figuras do underground paulistano e aqueles que orbitavam ao redor delas, o livro é um registro da história de pessoas constantemente ignoradas e empurradas às margens pela sociedade civil e política através de um relato demarcado entre 1970 a 2010.

Para escrever esta obra documental, Felitti esclarece, logo no prefácio do livro, que seria impossível redigir sobre as suas personagens da mesma forma que se escreve a biografia de um empresário, um cantor famoso ou uma figura pública, por exemplo. Isso porque, apesar dos anos dominando o underground de um dos expoentes polos culturais e econômicos do Brasil que é a capital paulista, as vidas de Jacqueline, André e Cristiane sofreram com a violência arquival, isto é, o descaso e consequente apagamento de suas histórias por falta de arquivos. Se, em 2023, integrantes da comunidade LGBTQIAP+ sofrem preconceitos e violências de diversas formas, no passado, isso era ainda mais frequente e escancarado, sendo a falta de documentação e registros oficiais sobre as histórias dessa população um reflexo direto dessas hostilidades.

Com essa realidade latente, Rainhas da noite é uma obra muito baseada na oralidade. Através de entrevistas, fotografias pessoais e os poucos registros históricos existentes, o autor cria uma narrativa linear que expõe a ambiguidade e humanidade de suas personagens. Em entrevista ao portal jornalístico Elástica, Chico Felitti evidenciou que “a bandidagem era fácil de achar. Por mais que muita gente não tenha topado dar entrevista falando sobre os crimes, eles abundavam. O que me faltava era o aspecto mais humano da vida dessas pessoas e que foi mais difícil de encontrar. (...) Uma preocupação muito grande que permeou esse processo todo era não contar uma versão enxuta da história, e, sim, contar a história inteira para gente entender o máximo possível. Essas pessoas eram complexas, não eram só más”.

As personagens da obra do jornalista – é importante destacar – são reais e, apesar de comandarem bordéis, andarem armadas, cometerem crimes e infrações, eram simplesmente pessoas em busca de seu lugar em um mundo que insistentemente as deixava de fora. Ainda no prefácio, Felitti anuncia: “o que ficou de fora do registro formal sobre as rainhas da noite e permanece apenas na lembrança de quem as conheceu são o terror, a riqueza e a generosidade dessas líderes. Rainhas da noite é uma tela de memórias de mais de cem entrevistados que passaram por esse universo. Os fatos, os diálogos, as danças, roupas e perucas descritos neste livro são reais, e pertenceram a pessoas que habitaram o centro de São Paulo”.


Imagem: Companhia das Letras/Reprodução

As histórias de dedicação e poder de Jacqueline Blábláblá, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan se sobrepõem como fio condutor da narrativa do livro, mas permite que outras pessoas da cena tenham sua vez e voz. Até mesmo em memória, atuando como fomentadoras de uma cultura gigantesca, mas que esteve escondida como forma de se manter viva. É fácil associar as protagonistas da trama a seus crimes, mas o que o autor convida o leitor a fazer é justamente ir ao encontro a essa visão delimitadora e encará-las de frente, para compreender as dores e os medos vividos por essa comunidade diariamente, a violência extrema, a normalização de abusos e o descaso dos agentes públicos, que deveriam proteger e cuidar de toda a população.

O livro é sobre essa falta de cuidado e de amor e de como isso foi combustível para a criação de uma comunidade de desamparados que, ali, ao seu modo, criou uma vida com mais amizade, ternura, compaixão. O salão de beleza exclusivo para travestis de Jacqueline, o império da Boate Prohibidu’s criada por Mayo, o apartamento de milhões de cruzeiros de Cristiane Jordan, todos evidências de uma vida em busca de estima e reconhecimento.

Felitti, também autor dos livros Ricardo e Vânia (2019), A casa: A história da seita de João de Deus (2020) e Elke: Mulher Maravilha (2021), e do famoso podcast A mulher da casa abandonada (2022), propagou, em Rainhas da noite, uma história inacreditável e real. Durante os anos em que a cronologia se desenrola, o leitor é convidado a conhecer uma São Paulo invisível, na qual as ruas e avenidas do centro se transformaram em cenário para as competições de beleza, concursos de miss, salões de cabeleireiros e boates com luzes e dança durante as madrugadas. É sobre essa cena que o livro se debruça, investigando as vidas de Jacqueline, Andréa e Cristiane, as líderes de uma máfia composta por travestis, transformistas, transexuais, homens gays e mulheres lésbicas, criada como forma de sobrevivência e resposta à exclusão da sociedade.

É simbólico que as vozes da tríade estejam, a partir de agora, marcadas na história em um livro-reportagem composto de falas de pessoas próximas a elas, travestis presentes na vida noturna dos anos 1970, 80, 90 e no início no novo século, na glória e decadência das chamadas Rainhas da Noite.

LAURA MACHADO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.

Publicidade

veja também

Livro traça história do cinema pernambucano

A mágica de iludir e encantar

Gráfica Lenta no Vale do Catimbau