Curtas

As relações, segundo Mary Gaitskill

Livro de contos de autora norte americana debate relacionamentos controversos

TEXTO Adriana Dória Matos

02 de Maio de 2022

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 257 | maio de 2022]

Assine a Continente

“– Posso maltratar você um pouco mais? – perguntou ele, com doçura. – Aqui no carro?
– O que você quer fazer?
– Posso amordaçar você? É só isso que peço.
– Mas eu quero conversar.
Ele respirou fundo.
– Tá vendo, você não é masoquista de verdade.”

Era pra ser Um fim de semana romântico, nos termos de um caso entre um cara casado e uma mulher que se apresenta a ele como o par ideal para um sádico. As coisas não dão tão certo; na verdade, o encontro é uma furada. Do mesmo modo, a percepção de agressividade e desajuste costura a relação em O paquera de Daisy, que envolve uma mulher e um homem jovens que trabalham num “sebo decrépito” nova-iorquino e estão ambos traindo seus parceiros nesse envolvimento mixuruca. “Não sei o que te faz pensar que tenho qualquer intenção de ser legal com você”, solta Joey para Daisy. É estranho que ela se deixe maltratar pelo homem, porque, antes de ter um lance com ele, Daisy o achava desprezível. Sendo que foi aceitando a conquista dele, até se sujeitar.

Já em Uma aventura gostosa, o caso é entre uma prostituta de 22 anos e um coroa de 59 anos de idade, cliente também casado. “– Por que você vem a lugares como esse? (...) – Você não se dá bem com a sua esposa?”, as perguntas de Jane soam ingênuas, mas são bem assertivas, assim como as colocações que faz a Fred, que tenta emular um namoro com aquela moça curiosa sobre as incongruências dele. Enquanto, neste conto, a garota de programa nega uma relação fora do bordel, em Tentativa, Stephanie passa o número do seu telefone para Bernard, um advogado quarentão casado, e mantém com ele uma relação fora do Christine’s.

“Stephanie não era exatamente uma profissional; rodava bolsinha uma ou duas vezes por ano, quando ficava muito revoltada com o trabalho de escritório ou quando não conseguia pagar as contas”, assim, é apresentada nas primeiras linhas da história. Aspirante a escritora, ela está em busca de um emprego na área editorial, tem amizades no campo da arte, frequenta galerias, festas badaladas, redações de editoras, mas “até gosta de alguns clientes” da casa de encontros sexuais que, de acordo com a sua gerente, tem renome graças à intelectualidade das suas garotas. “Aqui todo mundo tem vida dupla. Aquela é Alana, uma artista. Suzie é estilista e Beatrice é enfermeira”, indica a cafetina.

Todos os nove contos de Mau comportamento (Bad behavior, Fósforo, 2021) tratam de relacionamentos, todos eles desconcertantes de alguma forma, principalmente porque evidenciam que relacionamentos são (muito) imperfeitos, tensos e potencialmente destrutivos. E quando a sua autora, Mary Gaitskill, coloca esses relacionamentos em zonas escuras ou mal iluminadas de nós mesmos e da sociedade, aí é que a coisa fica intensa.

Então, é bom ficar sabendo: ler o livro poderá ser uma experiência inquietante, porque vai mexer com seus sentimentos e pudores, vai colocar em xeque seus conceitos e avaliações sobre o que é ou não é um “mau comportamento”. Pode lhe causar angústia ou repulsa. Pode lhe excitar (rubores na sala agora). De uma forma bem urdida literária e esteticamente (com uma tradução ajustadinha da poeta Bruna Beber para o português), Mau comportamento joga na nossa cara que não existe, afinal, o bom comportamento. Numa analogia com as fábulas, poderíamos dizer que apenas existe o lobo, sendo bom ou mau uma convenção moral.

Talvez por seu latente desconforto (ou pelas verdades postas na mesa com personalidade e pertinência), o livro de contos tenha obtido uma recepção alvoroçada, quando do seu lançamento nos EUA, em 1988; portanto, há 34 anos. Aquela era a estreia literária de Gaitskill. Cedo, a audiência – tendo como batedores o jornalismo cultural e a crítica especializada – quis investigar a vida pessoal da ousada autora.

Assim, além dos dados biográficos habituais sobre local de nascimento, filiação, formação etc., revelou-se a trajetória anticonvencional, ou rebelde, de Mary Gaitskill, que tentou fugir de casa aos 15 anos, foi internada numa clínica psiquiátrica no resgate (ah, os estragos do mau comportamento…) e, ao fugir novamente, rumo à costa oeste – desta vez com sucesso –, sobreviveu fazendo bicos, como vender flores nas ruas, ser cobradora em ônibus e stripper. Ao voltar para o leste, estudou Jornalismo na Universidade de Michigan e, depois da graduação, no ano 1981, mudou-se para Nova York, onde foi se mantendo como balconista de livraria, recepcionista, revisora, fazendo, aos poucos, frilas como jornalista e escrevendo a sua ficção. Ela contou, em entrevistas, que escreveu os contos de Bad behavior entre 1982 e 1987, e que, inicialmente, algumas das suas histórias foram preteridas por editores.

Hoje, aos 68 anos de idade – ela nasceu no ano 1954, em Lexington, Kentucky –, Mary Gaitskill tem publicados três livros de contos (além deste Bad behavior, Because they wanted to, 1997, e Don’t cry, 2009), quatro romances (entre os quais, o primeiro Two girls, fat and thin, de 1991, e o premiado Veronica, de 2005), além de vários ensaios (alguns deles saídos, inicialmente, em revistas literárias, como Lost cat, pela Granta, em 2020). No Brasil, por enquanto, foram lançados Mau comportamento e Isso é prazer + A dificuldade de seguir as regras, reunindo, respectivamente, uma ficção (2019) e um ensaio (1994), pela mesma editora Fósforo. Além de escritora, Gaitskill é professora universitária de escrita criativa.


Mau comportamento foi o primeiro livro publicado por Mary Gaitskill. Imagem: Reprodução

Sobre a escrita literária, propriamente, não são apenas marcantes, em Mau comportamento, os enredos e os personagens criados pela autora, mas a estrutura textual – com câmbios bem articulados entre os tempos da narrativa e os narradores – e os excelentes diálogos e descrições. A autora não esconde nada e torna tudo palpável, verossímil. Os contos têm um bom tamanho (não menos de 20 páginas, cada um deles), dando espaço para o desenvolvimento e a complicação das tramas. Às vezes, puft!, o fecho é até decepcionante, mas nunca gratuito.

Um dos contos que talvez sintetize as qualidades aqui resumidas dessa autora é Secretária, que traz como personagem narradora uma jovem sem muita perspectiva profissional, que acaba conseguindo um emprego de datilógrafa numa firma de advocacia. “Naquela noite coloquei minhas roupas novas de trabalho em cima da cadeira e fiquei olhando para elas. Uma saia marrom, uma blusa bege. Aquela feiura insossa me atraiu, mas não sabia quanto tempo o encanto ia durar. Olhei para elas sob o contraste cinza da luz da noite e rolei em direção ao canto escuro da minha cama”: quanta expressão de sentimentos num simples cromatismo. Assim como para outras mulheres que sofrem assédio, a situação com o chefe não fica suave para Debby…

Mas não vamos contar o conto, ele vale ser lido. Nem se dê ao trabalho de buscar um atalho assistindo ao filme A secretária (protagonizado por Maggie Gyllenhaal), inspirado na história, com pitadas de outras da autora. Porque a versão romantizada nas telas tira de nós a experiência opressiva, complexa e simultaneamente doída e erótica do conto.

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da revista Continente e professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.

Publicidade

veja também

A mágica de iludir e encantar

Gráfica Lenta no Vale do Catimbau

Adeus a Riva