Pois, assim como Irene de Neuza diz, em determinado momento a propósito de um menino que paquera em sessões de cinema, “quem gosta tem que ter atitude, né?”. Irena de Mirinha (assim descrita nos créditos) decide se aproximar da meia-irmã porque gosta do desafio. Afinal, não é a adolescência a época em que o mundo e a vida se posicionam como missões hercúleas para os jovens que nela adentram? E, à medida que as duas Irenes passam a conviver, cria-se entre elas uma relação de intimidade sem paralelo – tanto porque na família tradicional de Tonico Irene é a filha do meio, ofuscada pela primogênita prestes a debutar e pela caçula que mal desfraldou, como porque na casa de Neuza, só são ela e a filha.
Ou seja, as duas Irenes preenchem uma lacuna na vida de cada uma. Num primeiro momento, ainda sob mistério, e, depois, já sem amarras. Um dos aspectos que chama a atenção na condução narrativa é a força do silêncio. Há muito de As duas Irenes que está no que não é dito - na troca de olhares, na parceria que se estabelece entre as duas adolescentes, nas elipses... O mérito do diretor Fábio Meira é justamente criar uma atmosfera dramática para que a relação entre as suas protagonistas aflore e atue como esteio e motor do enredo. Existe uma delicadeza, também, na forma como os atores se apropriam dos espaços e interpretam aquelas cenas familiares em um registro de naturalidade espantosa.
Em certo sentido, isso aproxima As duas Irenes e Como nossos pais (Brasil, 2017), filme de Laís Bodanzky que permanece em cartaz no Recife. Aqueles laços de família, aquelas palavras que não ousam ser ditas, aquelas revelações perigosas – tudo isso é usado como combustível, pelos dois cineastas, para dar ignição. E só. A narrativa não se estrutura em torno do “grande segredo”, e sim a partir dele, como, aliás, segue a vida, com seus fluxos e as dinâmicas do cotidiano que nos exigem mais, às vezes, do que os pontos de ruptura em si.
O que se segue são, justamente, notáveis estudos de personagens, e, nos dois filmes, belos retratos de travessias femininas. A jornada das duas Irenes e a jornada de Rosa em Como nossos pais se equiparam no vigor com que atingem a plateia. Juntas, essas personagens, mesmo atuando em temporalidades distantes e em filmes distintos, dialogam com o feminismo e com a necessidade da mulher de reescrever e conduzir sua própria narrativa. Em entrevista ao jornal El País, publicada em 2015, a escritora italiana Elena Ferrante resumia: “Há muitas coisas de nós que não foram contadas até o fundo ou que simplesmente não foram contadas, e acabamos descobrindo isso quando a vida de cada dia se turva e sentimos necessidade de pôr ordem”.
Em As duas Irenes, quem sente tal necessidade são duas adolescentes. Como os estudantes secundaristas a ocupar escolas no Brasil de 2017, como os jovens a protestar contra o atual governo nas passeatas no Brasil de 2017… No arcabouço ficcional do diretor Fábio Meira, as Irenes assumem as rédeas e subvertem o que se espera delas. Nos tempos de hoje, isso é um alento.Sessão especial de As duas Irenes
(Após a exibição, haverá debate com o diretor Fábio Meira)
Quando: Hoje, 19 de setembro, 20h
Onde: Cinema São Luiz
Quanto: R$6 (inteira) e R$3 (meia)