Durante a ditadura militar, tinha início no Brasil um movimento cultural cuja revolução estética e comportamental viria influenciar várias gerações, até os dias atuais. Seu álbum-manifesto Tropicalia ou Panis et circencis, lançado há mais de 50 anos, configurava-se como marco inicial dessa movimentação tropicalista, que vislumbrava a visão do país além dos estereótipos estéticos e da separação entre guitarras elétricas e música popular.
Entre os rostos que “passeavam na floresta escondida” e posavam para a capa do disco, registrada pelo fotógrafo Oliver Perroy, estava o da baiana Gal Costa. Em sua interpretação, canções como Baby e Mamãe, coragem seriam imortalizadas e, logo, a Musa da Tropicália se tornaria também uma “escola de interpretação e de escolhas corajosas” para diversos artistas contemporâneos.
Assim aconteceu com As Bahias e a Cozinha Mineira, não somente pela voz doce e voraz de Gal, mas pelo “divino maravilhoso” de ser, como disse Paulo Leminski, “exatamente o que se é”. Com apresentação confirmada na programação do 26º Janeiro de Grandes Espetáculos, que acontece de 8 de janeiro a 3 de fevereiro, o grupo musical formado por Assucena Assucena, Raquel Virginia e Rafael Acerbi desembarca na capital pernambucana após um ano de intensas movimentações.
Além de ter assinado contrato com a Universal Music, lançado o terceiro álbum de estúdio Tarântula (2019) e estreado no Rock in Rio, o trio foi indicado ao Grammy Latino, na categoria de Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa, sendo a primeira vez que mulheres trans, junto a Liniker (indicada a Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa), ocupam essa posição.
A paixão pela discografia de Gal Costa, especialmente durante o período que compreende Domingo (1967), álbum com fortes influências de João Gilberto, até Baby Gal (1983), nos últimos anos de regime militar, não foi o único elemento em comum aos integrantes do grupo.
O próprio nome As Bahias e a Cozinha Mineira indica as coincidências que marcaram esse encontro, como explicou Assucena, em entrevista à Continente: “Sou baiana de Vitória da Conquista, Rafa é mineiro, Raquel é paulista, mas morou dois anos na Bahia para estudar Jornalismo e ser cantora de axé. No retorno a São Paulo, volta com influência baiana muito forte, tanto cultural, quanto de sotaque, e ganha o apelido de ‘bahia’, assim como eu”.
A convergência do trio aconteceu no curso de História da Universidade de São Paulo, onde se conheceram e formaram, em 2011, uma banda em homenagem a Amy Winehouse. Tempo depois, graças à química e às descobertas artísticas, As Bahias e a Cozinha Mineira teceram uma identidade heterogênea. A breve discografia flutua entre sonoridades como baião, ijexá, samba e rock em Mulher (2015), adquirindo pequenas injeções de música eletrônica dentro do universo pop de Bixa (2017), até chegar à mais comercial Tarântula (2019).
Além da Tropicália, do sertão de Assucena (também de Glauber Rocha, como faz questão de lembrar, em diversas entrevistas) e do axé de Raquel, a cozinha mineira, representada por Rafael, nascido em Poços de Caldas, traz o Clube da Esquina para o amplo repertório das Bahias. Soando autêntico e inovador, como também acontecia no movimento “liderado” por Milton Nascimento, mas indissociável de Fernando Brant, Lô Borges, Toninho Horta, entre tantos outros expoentes.
O último álbum de As Bahias e a Cozinha Mineira carrega um forte simbolismo. “Tarântula é uma palavra muito bonita, musical e sonora. Só que, além disso, carrega historicamente um sentido muito violento para a comunidade LGBT brasileira. Em 1987, a polícia militar institucionaliza uma perseguição sistemática à comunidade, com pretexto de controlar o vírus HIV. Muitas travestis, homossexuais e lésbicas morrem nesse período, no fim da ditadura militar. Essa violência já acontecia, mas a questão é que havia sido autorizada pelo Estado. Então, tivemos a ideia de rememorar seu significado e nos reapropriarmos desse conceito”.
Em seu processo de composição, a banda não elege uma única inspiração, como conta Assucena: “Eu olho para a vida, para o cotidiano, para as minhas qualidades, defeitos, relações sociais e contexto político. A inspiração se relaciona com meu estado de espírito e humor”. Nesse sentido, As Bahias e cozinha mineira é política simplesmente pelo fato de ocupar espaços e cantar sobre afetos historicamente negados para corpos transexuais, e tantas outras minorias sociais.
MAIS DE 100 ATRAÇÕES Além do grupo, a baiana Belô Velloso e a pernambucana Alessandra Leão também passam pelo palco do festival, cuja grade de programação é composta por mais de 100 atrações. A 26ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos acontecerá em teatros espalhados pelo Recife e em mais seis cidades pernambucanas. Neste ano, apesar da música e da dança terem conquistado mais espaço, o “carro-chefe” do festival continua sendo as artes cênicas.
Entre os destaques está o projeto Trilogia Vermelha, desenvolvido pelo Coletivo Grão Comum. Nele, três espetáculos colocam em cena personalidades nordestinas que tiveram papel imensurável na História. A primeira é h(EU)stória – O tempo em transe, sobre o cineasta Glauber Rocha, pa(IDEIA) – Pedagogia da libertação, sobre Paulo Freire, e Pro(FÉ)ta – O bispo do povo, sobre Dom Helder Câmara. Para conferir todas as atrações, acesse o site www.janeirodegrandesespetaculos.com.
THAÍS SCHIO é jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.