Curtas

Arthur Moreira Lima: Um piano para todos

Documentário sobre a longa incursão geográfico-musical do artista e seu instrumento evidencia performances completas e retrata um amplo painel geo-humano, em meio a poucas falas do protagonista

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

07 de Novembro de 2022

Filme traz viagens de Arthur Moreira Lima feitas entre 2002 e 2018, por 500 localidades brasileiras

Filme traz viagens de Arthur Moreira Lima feitas entre 2002 e 2018, por 500 localidades brasileiras

Foto Divulgação

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Arthur Moreira Lima talvez seja o artista que tenha atuado com mais audácia na formação de plateia de música clássica no país. Em termos de conquista e manutenção de público, não há como ninguém garantir — pois nenhum de nós tem o poder para desencadear epifanias intencionalmente —, mas em termos de abrangência geográfica podemos conferir esse carimbo sem hesitação.

Falando por extenso: não há como ninguém garantir quanta gente passou a ouvir um pouco mais daqueles compositores considerados universais, ou atemporais, a partir do inédito contato com o som de um piano ao vivo. Certo é que, segundo os números apresentados em Arthur Moreira Lima: Um piano para todos, pelo menos um milhão de pessoas assistiu a um recital pela primeira, senão única, vez na vida. Fincando-se agulhas em um mapa, a cobertura alcança 500 localidades em todas as macrorregiões e biomas brasileiros.

Tal façanha resultou de um conjunto de incursões de Arthur Moreira Lima entre 2002 e 2018, ora resumidas no documentário dirigido por Marcelo Mazuras, que estreia no dia 10 de novembro. A verdadeira dimensão dessa odisseia do artista carioca e de seu piano, transportado estrada e rios afora, é sintetizada pela cena, digna de Fitzcarraldo, em que dois caminhões (um que serve de palco e camarim e outro que abriga os equipamentos de sonorização) mais uma van e um veículo utilitário esportivo singram o Rio Solimões em uma balsa.

Esse louvável missionarismo, de levar a arte a todos os povos, é definido por Moreira Lima como uma proposta humanística, muito bem compreendida quando o músico diz: “As pessoas ficam ali como numa missa campal, ouvindo música”. Você poderia perguntar: “Um violino ou um quarteto de cordas, mobilizando-se duas vans, não seria mais simples?”.

De fato, convergir uma orquestra sinfônica ou uma companhia de ópera seria oneroso e homérico, por requerer a confluência de umas dezenas artistas sob um espírito de abnegação que implicaria ausência do lar por diversas semanas ao longo de uns tantos anos. Calhou, considerando-se as possibilidades mais viáveis, que a coragem dessa iniciativa partiu de um pianista, cuja retribuição do público varia dentre duas amostras contrastantes: de uma conversa com humildes residentes da pequena Andrequicé (um distrito de Três Marias, em Minas Gerais) a mais de dois mil trabalhadores no canteiro de obras da Usina de Belo Monte, no Pará.


Em sua itinerância, Arthur Moreira Lima levou a música erudita para públicos que viram um concerto de piano pela primeira vez na vida. Foto: Divulgação

As performances musicais e os recortes de viagens por lugares de realidades geo-humanas tão diversas se distribuem ao longo de quase 120 minutos de filme, entremeados por preciosos resgates de recitais dados por Moreira Lima durante a carreira. A ressalva é que não haveria necessidade de mais do que duas ou três interpretações na íntegra. As demais caberiam bem em extras de um DVD (se fosse o caso) ou como farto material complementar para promover as redes sociais oficiais do artista.

Assim, caberiam mais falas do próprio pianista, que fazem falta ao longo do roteiro. São poucas — e muito valiosas, quando aparecem. É cortante quando ele confessa “Eu dei a vida pra tocar, sim”, enumerando o quanto de coisas deixou de fazer para estudar piano ou cumprir compromissos artísticos: jogar futebol com os amigos, brincar, conhecer uma cidade para além do hotel e da porta dos fundos de um teatro... Imagine-se o quanto isso renderia em aprofundamento discursivo, no lugar de uma interpretação completa de Chopin...

...ou o quanto renderia quando ele se posiciona contra o preconceito classista, em favor da popularização da música; ou sobre o desestímulo à prática da improvisação; ou sobre o lugar da música popular; ou a partir de uma declaração sempre pertinente sobre o papel do intérprete, que, para Moreira Lima, “é o de um médium, porque os compositores muitas vezes não colocam indicação nenhuma na partitura...”.

Ademais, outro aspecto não explorado é a contrapartida social conduzida pela esposa, Margareth Garret, e pela filha Graziela, ambas dentistas, durante as turnês: o projeto Um Sorriso pela Estrada, só mencionado em uma tela com legendas seguida de uma breve cena, antes dos créditos finais. É lícito, a esta altura, que alguém argumente que o foco do documentário são o artista em ação e sua empreitada rodoviária (ou melhor, rodoaquaviária).

Pois bem, se a intenção com a película foi conquistar o espectador por meio de uma seleção de boas imagens de um piano desbravador de selvas e outras entranhas geográficas, e de exímias interpretações do protagonista, o esforço foi válido, principalmente como resumo da odisseia e como prestação de contas. No mais, tais imagens acabam tão somente ilustrando um roteiro de tênue narrativa.

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista e biógrafo especializado em música erudita.

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