Parte do cancioneiro popular nordestino que tem no forró uma de suas matrizes fundamentais deve a Accioly Neto uma contribuição inconteste, em especial nos anos 1980 e 1990. O cantor e compositor, natural de Goiana (PE), foi o criador de canções que têm lugar consolidado no imaginário e na ponta da língua de gerações que já ouviram seus hits nas vozes de nomes como Fagner, Elba Ramalho, Roberta Miranda, Nando Cordel e mais um sem fim de artistas que gravaram e regravaram (e, ainda hoje, regravam) suas músicas. Só para citar duas, daquelas em que é difícil ouvir e não cantar junto: Natureza das coisas (“Se avexe, não/ Amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”) e Espumas ao vento (“Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim/ Um grande amor não se acaba assim/ Feito espumas ao vento”).
Falecido em 2000, aos 50 anos, Accioly Neto deixou uma extensa obra como legado cantado país afora. Parte dela está presente no álbum duplo Natureza sonhadora, projeto idealizado pela filha do artista, a produtora Talitha Accioly, com direção musical de André Macambira. O projeto foi viabilizado com incentivo do governo de Pernambuco, por meio do Funcultura. São 33 faixas, interpretadas por artistas diversos, a exemplo de Zeca Baleiro, Mariana Aydar, Petrúcio Amorim, Chico César, Zé Manoel, Maciel Melo, Ylana Queiroga, entre outros. O projeto também contempla o site www.acciolyneto.com.br, que traz informações biográficas do artista, sua discografia e detalhes do álbum que o homenageia.
Assim como era Accioly Neto, ao longo do disco percebe-se a versatilidade nas suas composições, em releituras que trazem um pouco de cada convidada e convidado, mas sem perder o DNA que o compositor imprimiu em cada canção. Para explorar essas múltiplas possibilidades de recriar a música de Accioly, coube a um grupo de primeira linha os arranjos das novas versões: Juliano Holanda, Yuri Queiroga, Júlio César e Renato Bandeira ficaram responsáveis pela produção de quase todas as faixas do álbum.
O disco conta com a participação de Fagner, Isadora Melo, Romero Ferro e Zé Manoel. Fotos: Divulgação
Óbvio que o forró – e sua vertente tão bem explorada por Accioly Neto, o xote – é que conduz a trajetória do disco, e importantes representantes do gênero registraram sua participação em homenagem ao compositor: Petrúcio Amorim, Irah Caldeira, Maciel Melo, Josildo Sá, Cristina Amaral, Flávio José, Rogério Rangel. Outro artista dessa mesma linhagem, Santanna o Cantador, foi de uma mistura de xote e bebop, em Severina Cooper (It’s not mole não), canção que rendeu a Accioly Neto o 2º lugar na 1ª edição da Cantoria de Música Nordestina, realizada em abril de 1978, no Teatro do Parque. Elba Ramalho também participa com um forró, Me diz amor, um dos grandes sucessos “pra dançar agarradinho” de Accioly. Já Mariana Aydar, cantora que tem forte ligação com a música nordestina, desconstrói o gênero, em uma versão de Saudade boa, que alia beats eletrônicos a instrumentos orgânicos, como a sanfona de Mestrinho e as percussões conduzidas por Duani, que produziu a faixa.
Da mesma “espinha dorsal” rítmica do xote, o reggae também dá o ar da graça em algumas das canções de Natureza sonhadora, como a própria faixa-título, interpretada por Ylana Queiroga. Em Desespero de causa, Maciel Melo dá voz a essa “mestiçagem musical” entre o ritmo jamaicano e o nordestino. A cantora e atriz paraibana Lucy Alves flerta com essa mesma mistura – e umas pitadas de dub – em Espumas ao vento.
Outros artistas resolveram explorar caminhos distintos para criar suas versões em Natureza sonhadora. É o caso de Lucas dos Prazeres, que, em Maracatulelê, lançou mão de um arsenal percussivo todo executado por ele, explorando as nuances rítmicas da música que vão se transformando durante a canção, ao transitar entre o maracatu e o coco. Zé Manoel fez de Que nem eu uma canção praticamente sua, tamanha a originalidade do arranjo criado por ele e a banda que o acompanha, em um dos mais belos momentos do álbum. Silvério Pessoa verteu No nosso é refresco para uma levada folk-country. Diabólica trindade – faixa-título do LP de Accioly, de 1981 – também ganhou, com Chico César, interpretação bem diversa da original, incluindo-se, até, a adaptação de um verso da letra para os tempos de hoje. Saem os “ratos e tricampeões”, entram os “patos pentacampeões”.
Essa renovação mais do que merecida da obra de Accioly Neto está refletida na presença da geração mais jovem de artistas – como os já citados Ylana, Zé Manoel e Lucas dos Prazeres, além de Almério, Isadora Melo, Flaira Ferro, Babi Jacques e Lasserre, Romero Ferro, Lucas Crasto, Isabela Moraes – e das releituras das canções do artista, que conseguiu, com um talento único para a composição, dar vida a uma poesia sagaz e conectada com o seu tempo, com a alma nordestina, ao mesmo tempo em que cantava as paixões do homem comum, fazendo infalíveis hits, de assimilação fácil e certeira. Natureza sonhadora é uma homenagem que conseguiu dar conta – em um pequeno excerto, diante da vastidão de sua obra – da prolífica inventividade de Accioly Neto.