Curtas

A terceira

Exposição de Marcia de Moraes evoca a vertigem de escrever um corpo no abismo do mundo

TEXTO Bianca Coutinho Dias

10 de Setembro de 2021

Marcia de Moraes, 'Chuva-choro'

Marcia de Moraes, 'Chuva-choro'

Imagem Filipe Berndt/Divulgação

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A terceira, exposição de Marcia de Moraes em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, conjuga questões da arte e da psicanálise trazendo para o centro de sua obra o corpo pulsional: dentes, seios, folhas, colunas vertebrais, troncos de árvores – vibrações e aspectos disruptivos saltam do seu lugar de origem e se deslocam para as obras expostas. Através do desenho, a artista encontra destino ao que transborda: para o vazio e para o excesso, para o que é radicalmente seu e para aquilo que é pura alteridade. 

Na conferência que também recebeu o nome de A terceira, Jacques Lacan trata de um ponto central para a psicanálise: a maneira singular como cada sujeito escreve um corpo. “Quem sabe o que se passa no seu corpo?”, interroga o psicanalista, que diz ainda: “A angústia é justamente alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo”. Com Lacan, retomamos a novidade freudiana acerca da corporeidade. Na psicanálise, o corpo não se reduz ao campo da biologia, mas se faz a partir da linguagem. 

Marcia de Moraes revela que há maneiras de se desdobrar o corpo, de ficcionalizar o que nele incide. Avançando pela produção da artista, vemos que um léxico é inventado e o desenho, que começa sem projeto prévio, encontra caminho na surpresa e no espanto. As perguntas que seus desenhos e suas colagens sustentam encontram-se nas entranhas e nas vísceras, no dentro e no fora, na superfície e na espessura das coisas. Até onde o corpo suporta? Como se escreve um corpo? De que matéria somos constituídos? 


Episódio 2

O gesto da artista se delineia na vitalidade explosiva do traço, que abriga também espaços vazios e o intervalo entre a nascente da imagem e sua inscrição. Diferentes pedaços do real vêm causar desejos e produzir efeitos, como uma condição que a leva a buscar um dispositivo topológico e discursivo que é uma espécie de profanação, como uma linguagem que se emancipa de seus fins figurativos e se prepara para um novo uso, para uma nova experiência do olhar. 

No livro O que vemos, o que nos olha, Georges Didi-Huberman nos convida a inquietar a visão diante da obra de arte e a experimentar o que não vemos. Na obra de arte, pode haver algo que atinja nosso olhar, que chame à perda de nossas certezas sobre o objeto e nos lance ao espaço em que possa vicejar a invenção. 

No traçado das primeiras formas, Marcia de Moraes abriga o espaço em branco. O intervalo revelado pelo traço do grafite e a cor como preenchimento desfiguram o figurativo, fazendo com que as coisas possam se imiscuir e perder seu contorno fixo. Dos desenhos às colagens há um movimento de sístole e diástole. Se nos desenhos seus acenos são de grande amplitude e expansão, nas colagens há outro tipo de gesto, um outro tempo. 

Numa dimensão de hibridismo e de inclassificável, seu trabalho não se deixa capturar com facilidade. O modo de preencher os espaços com cores se aproxima do pictórico. Usando sua matéria pulsátil – o lápis de cor – a artista encontra, na mistura sensível, algo de uma estética e uma ética. O caso do desenho O mormaço e o azul, uma abertura em um espaço tramado entre a cor e o fenômeno da natureza que se experimentam dialeticamente. Ou ainda em Onda solta, que busca na canção de Chico Buarque a evocação de um movimento encontrado no sinuoso de uma aparição. 


O mormaço e o azul

As referências partem de lugares diversos: o ambiente natural, uma música, um poema ou mesmo a obra de outra artista, como em Altos e baixos after Louise, uma homenagem à Louise Bourgeois. Seu trabalho cria dobras, desdobra-se, duplica e mistura discursos numa construção labiríntica que concede voz ao inanimado. Uma irradiação incessante acontece nas colagens feitas de recortes de desenhos, conjugando espanto a uma ironia fina, que comparece já nos títulos de obras como Octopus, Tava cheio, vazou, Ups and downs, Argolas tropicais, Sinuca. Os próprios nomes dados sabem perverter a linguagem, jogam com as ambiguidades e as circularidades da vida: em alguns dos trabalhos, os “anéis”, o “carrossel” ou mesmo os “filetes” que comparecem dos títulos à forma, injetam tremores na nomeação, sustentando algo de delirante que pode encontrar o indizível, o inominável, o real, o ponto em que toda significação escoa. 

Em suas profanações, Marcia de Moraes ousa desinvestir as camadas de sentido até o osso, escrevendo uma geografia corporal própria que enoda natureza e cultura, botânica e poesia, onde ranhuras desenham horizontes improváveis. 

Um furacão ou a chuva podem criar derivações convulsivas do afeto como em Chuva-choro, obra em que forma, cor e conteúdo conversam e criam camadas de acontecimento e espelhamento entre a vertigem do sensível e a vibração líquida da natureza. Elementos se repetem criando uma cartografia própria: um conjunto aberto sem lugares definitivos, uma resposta ao real que abriga o estranhamento necessário para se produzir algo, onde o irrepresentável e o impensável podem aparecer. 


Octopus

Êxtase – trabalho em que o que conecta é também o que separa – traz imagens que dizem do nascimento das coisas, e reverberam uma experiência vertiginosa e a sensação de certo embaraço interpretativo. São formas com enorme carga de sentido, mas sempre, em alguma medida, inacessíveis ou inassimiláveis. Trata-se do feminino em convulsão, como no Êxtase de Santa Teresa, escultura de Bernini que reverbera um corpo pulsional marcado pela linguagem. E como em Loie Fuller – atriz e dançarina que desenha movimentos envolvida em gestos e tecidos – algo de dança serpenteia a agudeza do trabalho de Marcia de Moraes, feito de dobras e curvas decompostas, a partir de uma compreensão que articula o invisível ao visível. 

Em suas obras, que agora se apresentam de maneira intimista – expostas, mas guardadas em cofre-forte –, podemos entrever a relação viva da cadência própria do feminino, como num poema de Hilda Hilst: 

Por que não posso pontilhar de inocência e poesia
ossos, sangue, carne, o agora
e tudo isso em nós que se fará disforme? 

E, daí, tocar um corpo em sua arquitetura e em sua paisagem escrita no abismo do mundo. 


Ups and downs

BIANCA COUTINHO DIAS, psicanalista e crítica de arte.

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