Em A morte habita à noite, o protagonista é Raul (Roney Villela), um escritor desempregado que vive com a parceira, Lígia (Mariana Nunes), em um apartamento malcuidado da capital pernambucana. Trabalhando com bicos, o homem tem pouco dinheiro e consequente dívida no pagamento das contas, assim como sua mulher. Em meio a dificuldades financeiras, iminente despejo e a delicada situação de testemunho o vizinho saltando para a morte, Lígia vai embora, deixando Raul para trás. Aparece, porém, uma mulher mais nova, com o espírito libertino e indecoroso. Cássia (Endi Vasconcelos) enxerga aquele homem como um desafio a ser conquistado e assim faz com que ele encare de um novo jeito o luto, o amor e a vida como um todo.
Com caráter intimista, o longa perpassa as emoções que surgem com a perda, de maneira quase crua, através dos dias repetidos do protagonista. Desleixado e triste, Raul percebe suas experiências com uma naturalidade niilista e convida o espectador a fazer o mesmo. Entre diálogos nos quais a voz pessimista parece gritar e cenas em que o silêncio toma conta, o homem segue em um pesar doloroso, contudo se recusa a parar e propriamente sentir.
Mariana Nunes e Roney Vilela em cena do longa. Imagem: Vitrine Filmes/Divulgação
Com todas as dores do mundo sobre os seus ombros, o personagem interpretado por Villela está condenado. Ele, assim como as mulheres que cruzam por seu caminho, irá embora. Em meio a uma rotina de boêmia, bebidas, nicotina, drogas e as palavras como grande ligação de todo o caos ao redor do escritor, Raul sofre com uma doença de pulmão e sabe que seu tempo não vai ser longo. Com os minutos esvaindo pelos dedos, as mulheres com quem se relaciona parecem instigar em si uma vontade mais latente de deixar uma marca no mundo. Conversando com cada uma delas, se aprofundando na história de outra pessoa, ele descobre mais da sua e o desejo de criar aparece por entre as cicatrizes, respirando na superfície.
O sentimento bucólico que abraça toda a obra tem uma razão para ser: A morte habita à noite tem inspiração em obras do importante poeta e romancista germânico e norte-americano Charles Bukowski. Com sua literatura que rompia com o tradicionalismo de sua época, ele criava personagens nos contos, poemas e escritos que quase sempre tinham como característica a angústia. Em um dos seus poemas, Bukowski escreveu que ‘um gosto precoce da morte não é necessariamente uma coisa má’ e, na obra de Morotó, essa máxima parece arder diante das cenas.
"O filme tem a dizer que o cotidiano sombrio o qual retrata não é uma fantasia, é a realidade de milhões de brasileiros que vivem na extrema pobreza. Além disso acredito que ele desperta um sentimento de reconhecimento e compaixão entre/perante essas figuras e também dialoga com a decadência de uma certa masculinidade e sua necessidade de transformação”, explica o diretor no material de divulgação enviado pela distribuidora Vitrine Filmes.
Endi Vasconcelos como Cássia. Imagem: Vitrine Filmes/Divulgação
Em meio ao amor, a morte, em meio ao caos, o equilíbrio. A morte habita à noite se debruça sobre essas relações complexas e resgata o arquétipo usado pelo poeta em um novo cenário, em situação contemporânea, nas ruas do Recife. Trazendo estes personagens marginalizados como pilares da narrativa e explorando as tortuosidades de suas experiências, foi selecionado para diversos festivais internacionais e nacionais, como o Festival Internacional de Cinema de Rotterdam - onde foi exibido na mostra Bright Future ainda em janeiro de 2020 - e o Cine Ceará – Festival Iberoamericano de Cinema, de onde saiu com o prêmio de melhor ator para Villela.
Nessa história que se desenvolve com certa lentidão, em que as ruas são um alento às cenas dentro do apartamento de Raul, são as boas atuações que nos conduzem, ainda que o protagonista não se envolva totalmente com as personagens que vai conhecendo ao longo da sua travessia. Aliás, sem muito carisma, ele não dá espaço para piedade — o que condiz com a inspiração nas tramas de Bukowski, ressalto — e é um personagem passível às associações satíricas popularizadas na internet nos últimos anos, que associa as características e estilo de vida dos ‘seguidores’ do escritor com homens manipuladores, por vezes preconceituosos, e que insistem em fingir uma enorme desconstrução em questões sociais e morais.
LAURA MACHADO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.