Curtas

A gente acaba aqui

Em um registro afetivo e sociológico, documentário de Everlane Moraes sobre o funeral do seu tio é lançado pelo programa Convida do Instituto Moreira Salles

TEXTO Taynã Olimpia

05 de Julho de 2021

Curta-metragem retrata a despedida de familiares e amigos

Curta-metragem retrata a despedida de familiares e amigos

Imagem Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Falar da morte é incômodo. Traz aversão, constrangimento e dor. Nem todo mundo é capaz de abordar o assunto de forma natural e respeitosa. A cineasta baiana Everlane Moraes, desde muito nova, convive com a temática da morte e a encara de forma tranquila. Junto com a sua mãe, frequentar velórios era uma atividade comum na sua infância e juventude, quando viveu numa cidade cuja população era formada por muitos idosos. Essa sua proximidade e curiosidade por temas existenciais foi um dos motes para o seu curta-metragem A gente acaba aqui (2021), que acompanha o funeral de um morador da comunidade onde cresceu.

O filme é uma homenagem a seu tio, falecido em 2011, em Aracajú, Sergipe. O homem não-famoso, membro de uma família de artistas, sempre teve o desejo que Everlane fizesse um documentário sobre ele. Porém, a promessa do filme, feita ainda em vida, precisou ser adiada e, após sua morte, ressignificada. Doente e seguro de que se aproximava de sua passagem, Wellington Conceição Fernandes concordou que seu velório e enterro fossem filmados pela sobrinha. E assim foi feito. A permissão também foi concedida pelo filho do falecido, primo da cineasta, e pelos demais familiares presentes no funeral – todos aceitaram e compreenderam a presença da câmera durante o ritual fúnebre.

As gravações ficaram guardadas por quase 10 anos, até que, com o falecimento da sua mãe, no final de 2020, a cineasta sentiu que era o momento certo de montar e divulgar o material. Tomando como inspirações e motivações o filme Di-Glauber (1977), que registra o ritual de morte do pintor brasileiro Di Cavalvanti, e o livro Notas sobre o luto (2021) da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, Everlane desengavetou as filmagens que, além de um curta-metragem, promoveram a ela reencontros póstumos, mesmo que digitais.


Filme foi todo filmado em preto e branco. Imagem: Reprodução

O que vemos nos 12 minutos do curta é um registro honesto e descritivo-afetivo do ritual de sepultamento. Acompanhamos a progressão de eventos, desde o velório, realizado na sala pequena da casa, com momentos de despedidas e orações, passando pela hora de fechar o caixão, embalado por lágrimas de saudade. Daí, se segue o momento do cortejo em direção ao cemitério, onde ocorre o sepultamento em gaveta mortuária. Ler o encadeamento de acontecimentos pode soar invasivo e impessoal, mas não é o caso do audiovisual.

Sim, há um ar fúnebre e denso nas imagens, mas muito do que se compreende delas se dá por aquilo que não é mostrado. Com filmagens em primeira pessoa, tendo apenas Everlane como cinegrafista, vemos os elementos da cena, desde o balde embaixo do caixão até a única lâmpada que ilumina o cômodo. Todavia, foi escolhido não mostrar o rosto do morto. Presenciamos, apenas, os olhares daqueles que dele se despedem.

A intenção não é suprimir a veracidade dos acontecimentos, mas, sim, torná-los mais acessíveis. Para isso, a escolha da filmagem toda em preto e branco incorpora um ar poético e etérico ao filme. Além disso, a ausência de trilha sonora musical é suprida por áudios gravados durante a cerimônia. É possível ouvir conversas casuais, que não necessariamente falam de morte, risadas, lamentos, palavras de conforto. “É um lugar de reencontro de familiares e amigos. A presença da morte em meio aos vivos”, percebe a cineasta em entrevista à Continente.


A cineasta Everlane Moraes trata de questões sociais, filosóficas e espirituais da diáspora negra em suas obras. Foto: Divulgação

A baiana, que se mudou ainda criança para Sergipe, sempre achou interessante esses reencontros promovidos pela morte, em especial nos velórios realizados nas comunidades pobres, em que todas as etapas do funeral são realizadas ou acompanhadas de perto por amigos e familiares. Uma tradição que aos poucos vem se perdendo, devido à terceirização desses serviços. Assim, além de lembrança e homenagem, o filme ganha carga sociológica ao registrar um recorte socioeconômico. 

“Com o filme, quero que olhem para a morte e possam pensar sobre ela, para lidar com tudo isso que estamos passando. Espero que as pessoas se conectem com a morte, porque estamos sendo usurpados desse ritual. Temos que lutar politicamente para morrer com dignidade. A morte é única para cada pessoa, para cada família. Espero que essas imagens possam confortar ou preparar para isso que vai acontecer com todo mundo”, revela Everlane, aludindo à intenção de lançar o documentário neste momento de tantas perdas geradas pela Covid-19. Ao final do filme, também nos deparamos com a emocionante lembrança dos entes queridos que aparecem nas filmagens e que faleceram antes do lançamento.

A gente acaba aqui (2021) é um dos selecionados para a mostra do Convida – um programa de apoio à produção artística durante a pandemia realizado pelo Instituto Moreira Salles. O curta-metragem, o nono dirigido por Everlane Moraes, pode ser assistido, gratuitamente, na plataforma do IMS: ims.com.br/convida/everlane-moraes/

TAYNÃ OLIMPIA, jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.

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