Junto com a doença e o animal misterioso, chegam a Justino também os sonhos, que, principalmente para os povos originários da região do alto do Rio Negro, são objetos de interpretação sobre nossa realidade. Vanessa até tenta tratar a enfermidade do pai, que insiste em dizer que ela é resultado da “comida de supermercado”, que nos deixaria fracos.
O filme se destaca pela delicadeza e assertividade de explorar, sutilmente, os conflitos que fazem parte de Manaus e de Justino. Na cidade, percebe-se o desequilíbrio entre o avanço da periferia e a natureza, ou mesmo entre o barulho dos motores e o da mata, que, inclusive, parece cantar como quem chama o protagonista. No personagem, o desequilíbrio está na vontade de se alimentar do que vem da terra e da obrigação de comprar “comida de supermercado” e, também, na busca por manter suas tradições vivas transmitindo histórias para seu neto, enquanto seu outro filho, que vive na cidade, parece não mais se interessar pela relação com sua cultura ancestral. Ou seja, é o conflito de quem se encontra dividido entre duas realidades.
“Existe um olhar que coloca os indígenas em um tempo passado, como culturas que só restam acabar porque já pertencem ao passado. Esse entendimento é de um racismo muito grande. Muitas pessoas, quando chegam na cidade, têm de lidar com essas dificuldades de encontrar um lugar e com esse conflito de, no centro urbano, ser visto como indígena de modo pejorativo. Enquanto isso, muitas vezes, na sua comunidade, ele não é mais considerado um indígena ‘original’. Isso produz dificuldades de encontrar um espaço de pertencimento. Apesar do filme ser atravessado por essa problemática, o filme não se constrói sobre isso”, frisa a diretora.
Justino caminha pela periferia de Manaus em A Febre. Imagem: Divulgação
Além da sutileza em explorar essas problemáticas, outro destaque de A febre é a sua banda sonora, elemento responsável por construir um clima quase que onírico no universo do longa, palco sobre o qual são construídos os sonhos e conflitos que atravessam Justino. Sobre a técnica, a diretora explica: “O som pra mim é bem importante na narrativa. Quando faço um projeto, pesquiso bastante. Fui pra Manaus, fiquei temporadas pesquisando locações, encontrando pessoas, ainda sem saber como seria o filme. A partir dessas experiências fui escrevendo. Passei um tempo no porto de cargas, passamos uma semana acompanhando o cotidiano do posto de saúde e das comunidades indígenas na periferia. Fui escrevendo o filme na medida em que essas temporadas iam acontecendo. Felippe Schultz (som) foi comigo numa dessas pesquisas e visitamos com o ouvido muito atento. Percebemos relações de timbres, de insetos que tinham sons parecidos com os de máquinas do porto. Pensamos sobre como, através do som, poderíamos escutar como Justino, que é atravessado por essa cidade na qual a indústria está muito perto da floresta. Esses espaços se avizinham sonoramente”.
É por isso que vim falar para vocês
Vivam com força e coragem,
Com força e coragem
Os versos acima são cantados por Rosa Peixoto ao final do filme. Ela, que junto com Regis Myrupu, teve papel também central na construção do longa. É que Maya passou meses em algumas comunidades até encontrar os atores que dariam vida a pai e filha. Ele, que foi escolhido melhor ator pelo Festival de Locarno, nunca tinha atuado. Ela tinha experiência apenas como figurante. Como o filme é falado em duas línguas, os atores tiveram participação no roteiro, deixando nele suas visões e opiniões: “O Regis e a Rosa tiveram participação ativa, pois eles tinham que estar sempre trabalhando esse roteiro. A cada dia de filmagem eles entravam mais em relação e acabamos sem exatamente um roteiro fixo, mas com uma base muito forte. Foi um processo muito surpreendente, de muita imersão e muitas horas de ensaio junto com um trabalho corporal muito forte. Foi muito importante, tanto a disponibilidade deles e a transformação das cenas. Existia uma atenção muito grande, que vem também de elementos culturais: são povos de cultura oral forte, de contação de histórias e atenção. Aprender um texto, para eles, é algo muito natural, assim como comunicar e dialogar. A gente se impressionou muito, foi um processo de grande aprendizado”, finaliza a diretora.
O longa estreia neste dia 12, simultaneamente nos cinemas e nas plataformas Net Now, Vivo Play e Oi Play.
AUGUSTO TENÓRIO, jornalista e, por vezes, cronista.