O verso acima é acompanhado por uma fotografia despretensiosa — como todas do livro — que mostra dois entregadores de aplicativo descansando em uma calçada. Antes, também causa espanto a fotografia de um casal dormindo na rua. “Quando saí, foi isso o que encontrei na rua. Muita gente com fome, muitos entregadores fazendo corridas para os apps e uma cidade paralisada. Na Rosa e Silva, tinha uma igreja vazia e sinal de trânsito que, quando esverdeia para o pedestre, ninguém atravessava. Ao mesmo tempo, comecei a ver pássaros, lagartixas e flores. É uma cidade que começou a renascer com o afastamento dos homens. Na calçada da Rua Amélia, encontrei um formigueiro, o que era impossível em outros tempos. Isso foi me espantando. Comecei olhando pro chão, depois para minha altura e, por último, para o que estava acima de mim”.
Questionada sobre a origem do seu hábito de contemplar os detalhes da cidade, Cida Pedrosa recorda de quando chegou ao Recife e ficava nas pontes, “abestalhada”, como ela se descreve, observando o Rio Capibaribe passar. Ela conta que o hábito foi trazido consigo do interior, onde as pessoas costumam dedicar-se mais à contemplação dos seus arredores. “Mas teve um momento, por volta dos meus 30 anos, que a cidade me engoliu. Eu não continuava contemplando no meu dia a dia. Nesse momento de pandemia, eu vi que precisava voltar a contemplar a cidade, pois eu passei a funcionar no automático, como muitos. Minha literatura rompe com esse estado automático e tem muito a ver com o Recife, uma cidade que está impregnada na minha alma. Por isso eu não quero somente contemplar a dor, quero contemplar o belo também. As geografias estão fortes na minha poesia, pois eu sou de territorializar muito. Tem poeta que viaja pra dentro, eu viajo para fora”.
O lançamento do livro foi realizado, assim como tantos outros eventos neste ano, através de um encontro virtual. Cida não imaginava, porém, que seria alvo de invasores virtuais de extrema direita. É que, além de poeta, cida é feminista e pré-candidata à vereadora do Recife pelo PCdoB, o que a coloca com o perfil dos alvos favoritos dos ataques tipo zoombombing, que têm “sequestrado” lives de mulheres de esquerda que concorrem a cargos públicos. Invasões semelhantes ocorreram, por exemplo, no fórum La Política es Cosa de Mujeres e com Giovana Mondardo, pré-candidata a vereadora na cidade de Criciúma (SC) pelo PCdoB.
“A reunião começou e eles já estavam dentro da sala. É que eu divulguei o link, pois acredito que os lançamentos de livros devam ser públicos. Depois eles conseguiram desligar meu microfone e o dos coordenadores. Começaram a gritar palavras de ordem, colocar sons de metralha, conseguiram remover o vídeo da campanha, gritavam pelo presidente Bolsonaro e ainda tocaram músicas do Exército. Tinha uma mulher com eles e eu consegui falar pra ela: ‘teu lugar não é ai, é aqui, do lado de cá'. Depois disso ela parou… Fiquei feliz com esse momento de esperança numa situação adversa. A gente criou uma alternativa em um outro link para os palestrantes, de forma a exibir o debate pelo YouTube”, conta a poeta.
Em tempo, a renda obtida com com a venda do e-book, que é feita exclusivamente através da Amazon, será destinada para a União Brasileira de Mulheres, entidade feminista do movimento social brasileiro que atua na promoção e defesa dos direitos das mulheres, para fomentar a campanha “distribua amor, doe alimentos”.
AUGUSTO TENÓRIO, jornalista.