Curtas

#Pandemiacrítica

Para pensar sobre esses tempos sombrios

TEXTO Thaís Schio

01 de Junho de 2020

Série de textos críticos oferece ideias para além das bolhas de confinamento

Série de textos críticos oferece ideias para além das bolhas de confinamento

Imagem Arte sobre foto de Afif Kusuma

[conteúdo na íntegra | ed. 234 | junho de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

Em tempos de pandemia, a sensação de uma vida em suspensão acompanha os dias de isolamento social e suscita questionamentos sobre o futuro. Embora hesitantes, divagamos sobre as consequências deste momento histórico, visitamos o passado de outras epidemias e apostamos fichas em teses capazes de designar os caminhos para o que seremos e como será a vida pós-Covid-19. Nessa busca pela retomada de sentidos, nenhuma resposta parece boa o bastante e o caminho de elucubrações diante do desconhecido nos coloca frente a frente com diversos outros vírus. “Constatamos agora que a sociedade, as instituições e as leis que criamos para nos protegerem, e nos assegurarem uma vida justa, falharam redondamente”, pontuou o filósofo, escritor e professor universitário português José Gil.

E continua: “o coronavírus, pondo em perigo qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto, torna todos iguais – não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde e à justiça”. Esses trechos compõem o ensaio O medo, disponível no site da n-1 edições, assim como diversas outras publicações compartilhadas no endereço virtual da editora, constituindo parte da #PandemiaCrítica, iniciativa que se propõe a reunir e fazer circular ideias relacionadas aos acontecimentos emergentes na atualidade. Uma estratégia de comunicação e propagação de ideias para além das bolhas de confinamento de nossos quartos e salas de estar, uma possibilidade de converter o medo que imobiliza em novas maneiras de ser e estar presente durante a quarentena.

A série de textos é, como ela mesma se declara, uma alternativa para esmiuçar como tal evento mundial pode alterar o percurso da humanidade e, quem sabe, abrir brechas para novos olhares. “Alguns dizem que depois disso nada será como antes. Numa era que parecia ter esgotado sua imaginação política, quiçá só uma pancada virótica seja capaz de nos despertar.” Ainda neste ensaio de José Gil, por exemplo, a pandemia revela-se como um agente capaz de substituir a atual noção generalizada de globalização; ponto de vista enfaticamente argumentado por Ailton Krenak, que se insere na coletânea com do tempo, transcrição de sua participação no Seminário de Perspectivas Anticoloniais, ocorrido em março deste ano, em São Paulo. Krenak há muitos anos percebe que o fenômeno de integração econômica, social, cultural e política categoriza-se como uma “perturbação planetária grave da ordem social, política e ecológica”.

No livro Ideias para adiar o fim do mundo’, o líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro desloca as certezas do leitor, ao considerar como mito toda a ideia de sustentabilidade, o que chama de uma mera “vaidade pessoal”. Para ele, não existe possibilidade de gerenciar a natureza e seus recursos, quando vivemos sob um modelo exploratório altamente insustentável, em que toda estética e arquitetura das cidades gira em torno de uma perspectiva colonialista. A mesma trazida em Bem-vindo ao Estado suicidário, quarto texto da série, em que o professor e filósofo Vladimir Safatle defende a perspectiva escravista como matriz da política brasileira.

Para Safatle, o que explica a propagação do alarde em torno do desemprego e da queda econômica como as possíveis piores catástrofes “provocadas” pela pandemia é a herança necropolítica do Estado brasileiro, cuja história atravessa o atropelamento sistemático de corpos “marginalizados” até chegar ao atual afogamento dentro de uma lógica suicida. “O engenho não pode parar”, esbraveja, em tom irônico, ao reiterar que os senhores de escravos continuam os mesmos, apenas aprenderam o business english. “Se para tanto alguns escravos morrerem, bem, ninguém vai realmente criar um drama por causa disso, não é mesmo?”

Outra voz potente dentro da série #PandemiaCrítica é a do filósofo espanhol e escritor feminista transgênero Paul Beatriz Preciado, autor do livro Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica e Manifesto contrassexual, ambos lançados no Brasil pela n-1 edições. Em seu texto Aprendendo o vírus, traduzido por Ana Luiza Braga e Damian Kraus, Paul traz a percepção do conceito de biopolítica foucaultiana para discutir o coronavírus, em análise histórica de outras diversas epidemias que já implodiram pelo mundo. E se, em Vigiar e Punir, o controle e dominação sob os corpos de indivíduos são mecanismos essenciais para sobrevivência política, a partir dos estudos de Roberto Espósito e Emily Martin, compreendemos que a imunidade desses corpos não pode ser um mero fator biológico, muito pelo contrário, a imunidade “se constrói coletivamente por meio de critérios sociais e políticos que alternadamente produzem soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte”.

Dizer que o vírus atua à nossa imagem e semelhança, em outras palavras, significa que cada sociedade e suas normas de gestão frente às crises endêmicas, ao estrangeiro ou outro, desvelam suas estruturas mais obscuras de poder: “Reproduzem-se agora sobre os corpos individuais as políticas da fronteira e as rigorosas medidas de confinamento e imobilização que nós, como comunidade, aplicamos nos últimos anos a migrantes e refugiados — até deixá-los fora de toda comunidade”. Uma reflexão interpelada pela escrita do camaronês Achille Mbembe, filósofo, teórico político e autor de dois livros lançados pela n-1, Necropolítica e Crítica da razão negra.

Em o direito universal à respiração, Mbembe faz uma ode à vida, à biosfera, ao espaço físico e à energia que todos os seres vivos têm direito de ocupar. Para ele, em um mundo que insiste na transformação do ser humano em um mero dispositivo plástico, um corpo-máquina, o atual momento patogênico obriga a enxergar não só a existência do corpo de carne o osso (corpo físico), mas também a consciência da própria mortalidade, sem direito à delegação. Lógica que nos faz perceber o meio digital como possibilidade de vida somente a curto prazo. Pois, em um futuro próximo, os bunkers digitais onde nos escondemos e isolamos nesses tempos de combate ao vírus, somados às demandas de manutenção de um mundo globalizado e hiperconectado não serão alternativas viáveis para a manutenção da vida.

Publicada através no endereço online da n-1edicoes, a curadoria de vozes presentes na série #Pandemiacrítica é uma das formas possíveis para se fazer atento e forte nesses tempos da Covid-19. Até o momento desta publicação, somavam-se 59 textos, quase todos breves, mas provocativos. São diversos autores, fora os aqui mencionados, como Jacques Rancière e Judith Butler. Curiosamente, a n-1 edições, desde 2017, já publicava uma série de cordéis sob o codinome de Pandemia, “um bacilo de pensamento, pronto para contaminar o entorno e abrir no mundo uma fresta singular”, alguns deles podem ser encontrados na loja virtual da editora. 

THAÍS SCHIO é jornalista em formação pela Unicap e estagiária da Continente.

Publicidade

veja também

Adeus a Riva

“Mulher, Corpo, Território: Julieta presente!”

Ô, ô, ô, Saudade do Recife e de Antônio Maria