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O Agridoce surgiu do encontro de Aurora Jamelo e Sophia William durante o processo de criação de um espetáculo para o qual foram convidadas, em 2018. Após o trabalho, a amizade continuou, assim como o interesse pelo teatro e o desejo de trabalharem mais vezes juntas. Sophia, graduada em Dança (Licenciatura) pela UFPE, e Aurora, designer e diretora de arte que já flertava com as artes cênicas, começaram a experimentar essa cena teatral juntas. O primeiro projeto, intitulado Transpassar, já existia como um solo de performance de Sophia, mas, com o passar do tempo, Aurora foi sendo introduzida, além de mais dois atores, Flávio Moraes e Nilo Pedrosa. Esses quatro artistas compõem a formação atual do grupo.
Mar fechado chegou para o Agridoce quando Transpassar ainda estava em temporada – era março de 2019. É um trabalho que, na primeira versão, seria baseado em Dom Casmurro, de Machado de Assis, mas, após alguns ensaios, surgiu como uma colcha de retalhos de um texto que já existia, de autoria de um amigo próximo dos artistas. Essa segunda versão abordava os relacionamentos líquidos a partir da perspectiva de um homem gay e uma mulher indígena. Janaína, interpretada por Sophia William, ganha agora novas nuances quando a artista propõe que a personagem seja uma mulher negra, trazendo questões raciais e religiosas.
O trabalho foi apresentado e chegou a entrar em temporada. No entanto, durante a pandemia, por questões de direitos autorais, o texto precisou ser refeito do zero. O grupo chegou a cogitar engavetar a peça, mas havia um desejo de continuar. Ao longo do isolamento, Nilo Pedrosa – que interpreta Caetano – resolveu desabafar no papel suas angústias desses quase dois anos. Com um texto escrito em forma de diário durante a pandemia da Covid-19, Mar fechado foi tomando forma com a ajuda de Aurora e Flávio (os dois assinam a direção e encenação do espetáculo), sem que tirassem a identidade e o tema já estabelecidos nas versões anteriores.
Janaína, interpretada por Sophia William, e Caetano, por Nilo Pedrosa. Foto: Anny Stone/Divulgação
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Mar fechado é um retrato fluido sobre a vida desses dois personagens, Janaína e Caetano. Eles se perdem no vasto oceano social contemporâneo, onde a liquidez das relações é estabelecida antes mesmo do encontro dos corpos; elas parecem escorrer pelos dedos. Enquanto ela luta para superar todo o peso do seu passado, com questões associadas à vivência da mulheridade negra, ele anseia por um mergulho profundo que lhe traga liberdade, imerso na própria realidade de um homem branco e gay. As questões afetivas estão em evidência e se modificam na medida em que são atravessadas por vivências tão diferentes, pela fricção de dois mundos que se chocam.
O que moveu o grupo a trabalhar com esses assuntos foi a superficialidade das relações afetivas atuais e o desejo de pensar esse lugar de forma honesta. A solidão, tema principal da peça, é o que separa e une os protagonistas. Caetano, que escolheu estar sozinho, e Janaína, cuja solidão não foi uma escolha – assim como não é para outras mulheres pretas e, sobretudo, travestis. Eles vivem uma contrapartida, dois personagens antagônicos, mas que se encontram em dado momento para coabitar essa história juntos.
Além dos temas abordados, o espetáculo ganha com uma coreografia assinada pela própria Sophia. Ela parte da ideia que dança e teatro não estão separados, são duas linguagens que possibilitam a construção de um todo. Transpassar, primeiro trabalho do grupo, já tinha uma pesquisa voltada para a performance na dança. Em Mar fechado, a artista sentiu a necessidade de trazer novamente essa palavra para o corpo.
Como a primeira versão do espetáculo foi construída na época da diáspora síria e da crise migratória, esse lugar de desesperança, de luta e sobrevivência serviu como mote para a investigação da dança no trabalho. Os movimentos surgiram como ondas, de levar embora essa descrença e trazer um respiro. A dança está nesse lugar de falar com o corpo, para além do verbalizar, e é possível, durante o espetáculo, identificar quando a fala quer dizer uma coisa e o corpo quer dizer outra.
O livro Amor líquido, de Zygmunt Bauman, é uma das referências para a dramaturgia do trabalho. Foto: Anny Stone/Divulgação
Ao perguntar ao grupo sobre as referências do trabalho, eles mencionam as obras de Pina Bausch, sobretudo Café Müller. Além disso, existe o próprio repertório dos artistas na dança popular e na dança afro. “O desejo era trazer o terreiro para cena”, conta Sophia em conversa com a Continente. Pois, apesar da liquidez da peça, foi preciso aterrar as ancestralidades, não só no corpo de Janaína, mas no de Caetano. Tudo isso de forma orgânica, expressiva e minimalista ao mesmo tempo.
O cenário é composto por vidros, copos e jarras cheios de água. “O desejo da cenografia era colocar esses elementos relacionados ao mar e desconfigurar, desmembrar essa ideia e colocar de uma forma possível em cena. A gente quis levar esse mar para o teatro, criar uma atmosfera cristalina, que limpa, que purifica, é um lugar que abarca a simbologia de Iemanjá”, diz Aurora. Além disso, a vela de barco, objeto que também está em cena, talvez seja o oposto desse líquido, é o lugar de segurança e repouso dos personagens. Transparece a interpretação de dupla metáfora: o lugar da água é o lugar de Janaína e a vela compreende quem Caetano é, num desejo de se libertar e, ao mesmo tempo, se ancorar em algo ou alguém.
O mar, elemento essencial da obra, é ainda usado como alegoria dessas ondas que levam e trazem a gente para a realidade. É um sentimento que arrebata, afoga, além do mar que existe dentro de nós, ora agitado, ora sereno e calmo. A sensação é de imersão, imensidão, vontade de chorar, transbordar em lágrimas e gritos. Mar fechado poderia ser resumido em três palavras ditas em cena pela boca de Janaína, personagem de Sophia: “Solidão, afeto e possibilidade”.
TANIT RODRIGUES é atriz, jornalista em formação pela Unicap e repórter estagiária da Continente.