"Eu acredito que o processo de escrita da poesia ultrapassa o poeta. Diante de uma pulsão de morte, eu respondi com uma pulsão de vida. Foi onde eu pude me agarrar", relata Antonio. "Gaia nasce desse momento não só meu, mas coletivo, de olhar para a história da civilização ocidental e pensar: onde a gente errou tanto, para chegar aonde chegou?"
"Eu escrevo poesia contra o pensamento moderno, contra o pensamento iluminista. Obviamente, não negando a ciência – eu nunca seria um negacionista, pelo contrário. Vejo esse homem racional que produziu coisas tão belas nas artes, na ciência e no pensamento e optou por criar uma cisão, romper civilização e natureza. Nisso, temos entendido tudo de pior que o homem moderno pode construir", diz.
O texto investiga as formas humanas de ocupar a 'Gaia contemporânea', em sua relação contraditória entre o consumo agressivo e a busca por alternativas de preservação. Fugindo do tom autobiográfico, o autor procurou incluir uma multiplicidade de vozes: "eu tento criar polifonias em todos os poemas, sem me excluir desse "nós" que eu critico. Eu não posso me excluir desse processo, estando ou não ao lado dos tiranos", observa. Palavras entre colchetes introduzem diferentes tons aos versos, entre denúncias, perguntas e súplicas ("dá-me mais vinho porque a vida é nada"!).
A partir da primeira página, são conectadas à tragédia climática as formas de exploração impostas a trabalhadores rurais e indígenas. São responsabilizados patrões e colonizadores, mas a narrativa é conduzida mais fortemente pela dor causada pelo chamado homem moderno a si mesmo, centralizado como herdeiro da violência.
Estacionamentos vazios, memórias emaranhadas, o trincar de dentes da ira e botões para disparar bombas são algumas das imagens dispostas em versos atestando "a derrota vertical da civilização". As lembranças convidam a imaginar de quem é a derrota anunciada: a dividimos entre todos ou têm nome e endereço os explosivos disparados?
Estampas O dia em que me vi no olho de uma cachorra e Além do desconhecido, o olho do poeta, criadas em água tinta sobre papel pela gravurista Julia Goeldi. Fotos: Julia Goeldi/Reprodução.
Para interpretar os entrelaces entre o humano e o natural (e o que ainda abriga os dois), a gravurista Julia Goeldi foi convidada para retratar, à sua forma, o universal. O encontrou em um dos olhos da cadela do poeta, também chamada Gaia, então espelhada na estampa de capa em água tinta O dia em que me vi no olho de uma cachorra. No verso do livro, em menor dimensão, incluiu a imagem Além do desconhecido, o olho do poeta.
[Gaia] comporta momentos de respiro em pequenos detalhes como este, em forma de esperança e afeto. "Façamos silêncio para ouvir a fala do vento", lê-se no poema [cosmogônicos]. Para Antonio, não há respostas, mas ainda é possível indicar um caminho: "é preciso criar atos que religuem o homem à natureza".
Escute abaixo o videopoema [narcisos], interpretado por Silvio Nobre para o lançamento:
MARINA PINHEIRO é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.