Curtas

[Gaia]

Segundo livro de Antonio Martinelli testemunha as contradições entre seres humanos e planeta em 20 poemas

TEXTO Marina Pinheiro

30 de Agosto de 2021

O livro segue 'Tetralogia da peste', questionando reconexão possível entre o homem moderno e a natureza

O livro segue 'Tetralogia da peste', questionando reconexão possível entre o homem moderno e a natureza

Foto Yghor Boy/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Tempestade lançada contra homens: corpos são cobertos por grãos pesados. A nuvem de areia é levantada de áreas desérticas onde uma vez existiram florestas – agora, elas formam dunas contaminadas por detritos. "Ferro, bactérias, mercúrio, esporos, pesticida, vírus" cruzam oceanos para encontrar gargantas humanas: "ao homem, eterno criador de desertos, caberá engolir toda poeira e lixo", determina a vingança de [Gaia].

O nome da deusa da Terra, que evoca toda a força criadora nas mitologias grega e romana, intitula o segundo livro de Antonio Martinelli. Nele a criação terrestre se volta contra a humanidade, responsabilizada pela sua relação destrutiva com a natureza. Uma sequência de 20 poemas testemunha as ruínas, protagonizando a figura do 'homem moderno': caracterizado pelo ideal do progresso individualista, ele condena as escolhas que o levaram ao pesar, mas não é capaz de escapar às consequências delas.

O livro é um grito de culpa que dá sequência a Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade]. Escrito no isolamento iniciado em 2020, a Tetralogia inaugurou um vocabulário pandêmico na poesia de Martinelli, levando o leitor a passagens por quatro locais: são descritas as respostas de Bérgamo, Brasilândia, Manaus e Guayaquil à crise humanitária. A desigualdade econômica dá tom à tragédia na narrativa, que descreve a última como "a cidade que abandonou seus doentes em cima das macas, seus corpos em cima das mesas".

Naquele momento, o escritor, jornalista e gestor cultural lembra ter carregado a esperança de que a crise levasse a coletividade a revisitar suas relações com o planeta, pensando as causas do desequilíbrio ambiental presente. Do contrário, acentuou relações de exploração e aumentou níveis de pobreza, tendência de outras pandemias históricas. Questionando como se colocar diante de um mundo partido, surge a segunda reunião de poemas, publicada neste ano pela Editora Quelônio.

Escritor Antonio Martinelli, com cigarro na boca, olha para cima e diretamente para a câmera em mesa de trabalho com livros
Questionamentos presentes em
[Gaia] surgem de aproximação do escritor Antonio Martinelli a crenças de outras culturas. Foto: Yghor Boy/Divulgação

"Eu acredito que o processo de escrita da poesia ultrapassa o poeta. Diante de uma pulsão de morte, eu respondi com uma pulsão de vida. Foi onde eu pude me agarrar", relata Antonio. "Gaia nasce desse momento não só meu, mas coletivo, de olhar para a história da civilização ocidental e pensar: onde a gente errou tanto, para chegar aonde chegou?"

"Eu escrevo poesia contra o pensamento moderno, contra o pensamento iluminista. Obviamente, não negando a ciência – eu nunca seria um negacionista, pelo contrário. Vejo esse homem racional que produziu coisas tão belas nas artes, na ciência e no pensamento e optou por criar uma cisão, romper civilização e natureza. Nisso, temos entendido tudo de pior que o homem moderno pode construir", diz.

O texto investiga as formas humanas de ocupar a 'Gaia contemporânea', em sua relação contraditória entre o consumo agressivo e a busca por alternativas de preservação. Fugindo do tom autobiográfico, o autor procurou incluir uma multiplicidade de vozes: "eu tento criar polifonias em todos os poemas, sem me excluir desse "nós" que eu critico. Eu não posso me excluir desse processo, estando ou não ao lado dos tiranos", observa. Palavras entre colchetes introduzem diferentes tons aos versos, entre denúncias, perguntas e súplicas ("dá-me mais vinho porque a vida é nada"!).

A partir da primeira página, são conectadas à tragédia climática as formas de exploração impostas a trabalhadores rurais e indígenas. São responsabilizados patrões e colonizadores, mas a narrativa é conduzida mais fortemente pela dor causada pelo chamado homem moderno a si mesmo, centralizado como herdeiro da violência.

Estacionamentos vazios, memórias emaranhadas, o trincar de dentes da ira e botões para disparar bombas são algumas das imagens dispostas em versos atestando "a derrota vertical da civilização". As lembranças convidam a imaginar de quem é a derrota anunciada: a dividimos entre todos ou têm nome e endereço os explosivos disparados?

Gravura em preto e branco do olho da cadela 'Gaia' Gravura em preto e branco do olho do poeta Antonio Martinelli.
Estampas O dia em que me vi no olho de uma cachorra e Além do desconhecido, o olho do poeta, criadas em água tinta sobre papel pela gravurista Julia Goeldi. Fotos: Julia Goeldi/Reprodução.

Para interpretar os entrelaces entre o humano e o natural (e o que ainda abriga os dois), a gravurista Julia Goeldi foi convidada para retratar, à sua forma, o universal. O encontrou em um dos olhos da cadela do poeta, também chamada Gaia, então espelhada na estampa de capa em água tinta O dia em que me vi no olho de uma cachorra. No verso do livro, em menor dimensão, incluiu a imagem Além do desconhecido, o olho do poeta.

[Gaia] comporta momentos de respiro em pequenos detalhes como este, em forma de esperança e afeto. "Façamos silêncio para ouvir a fala do vento", lê-se no poema [cosmogônicos]. Para Antonio, não há respostas, mas ainda é possível indicar um caminho: "é preciso criar atos que religuem o homem à natureza".

Escute abaixo o videopoema [narcisos], interpretado por Silvio Nobre para o lançamento:

MARINA PINHEIRO é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.

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