Curtas

(...) metade é verdade – Ruth Escobar

Biografia documenta a trajetória da atriz portuguesa que se confunde com a do teatro brasileiro da segunda metade do século XX

TEXTO Márcio Bastos

01 de Julho de 2021

Atriz em cena no espetáculo 'Torre de Babel' (1977)

Atriz em cena no espetáculo 'Torre de Babel' (1977)

Foto Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 247 | julho de 2021]

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“Sabe todas aquelas histórias que você já ouviu sobre mim? Pois!, metade é verdade”, provocava Ruth Escobar (1935-2017), ciente, também, que grande parte da mítica em torno de sua figura era resultado de suas próprias criações. Esmiuçar sua história, portanto, é adentrar um universo em que fatos e fabulações muitas vezes se misturam, criando um universo particular. A atriz portuguesa, que se fez brasileira não só ao adotar o novo país como residência, mas por contribuir com sua história cultural e política e fazer dele terreno para florescer a sua criatividade, de fato tem uma vida fascinante, do tipo que mesmo na realidade, pode parecer ficção. Sua trajetória, que se confunde também com a do teatro brasileiro da segunda metade do século XX, é tema da biografia (...) metade é verdade – Ruth Escobar, escrita por Alvaro Machado.

Lançada pelas Edições Sesc São Paulo, a obra é resultado de um minucioso trabalho de pesquisa do jornalista, editor e pesquisador teatral, que além de documentações diversas, teve acesso irrestrito ao acervo pessoal da biografada. Como acompanhou parte da trajetória de Ruth, vivenciando a cena cultural de São Paulo a partir dos anos 1960, o autor também conseguiu localizar algumas questões centrais do livro a partir de suas vivências.

“Comecei a pesquisa dentro do acervo dela, em sua casa, no Pacaembu, ela estava em vida, embora muito debilitada, sem lucidez. Só topei a aventura de escrever este livro por ter acesso a esse material. Ela era muito zelosa com esse material, porque dizia que a memória do teatro é muito efêmera e sobrevive somente através de críticas, fotografias e depoimentos pessoais. Então, ela queria preservar ao máximo, tanto que contratou muitas equipes de filmagens para registrar os maiores espetáculos dela. Dentro desse acervo tinha mais de 500 mídias audiovisuais”, contou o autor, em entrevista à Continente. “Não é um livro apenas sobre a aventura de uma pessoa, mas de todo um grupo de artistas, ativistas políticos. É um sonho dela, mas é coletivo.”

Ao longo das 624 páginas, fartamente ilustradas com imagens da vida pessoal, espetáculos e eventos marcantes da cultura brasileira, o autor esmiúça a trajetória de Ruth desde sua infância. Os primeiros anos de vida, em Campanhã, freguesia do Porto, foram marcados por uma ruptura na inocência, quando descobriu que o homem que considerava ser seu pai não era seu genitor e nem marido de sua mãe. Seu pai biológico, por outro lado, não queria saber dela e essa orfandade da figura paterna e a vontade de fugir do preconceito da sociedade conservadora que passou a excluí-la depois que sua condição de “bastarda” foi revelada, além de uma calvície precoce, gerou nela o objetivo de migrar para o Brasil.


Ruth como Dila, em 'Cemitério de automóveis' (1968). 
Imagem: 
Reprodução

E assim o fez em 1951, quando desembarcou com a mãe no Porto de Santos e iniciou um novo capítulo na ex-colônia portuguesa. No novo país, utilizou sua inteligência e astúcia para conquistar a independência e se aproximar das artes, inicialmente através da revista Ala Arriba, voltada para a comunidade lusitana, que ela lançou ainda aos 18 anos. Pela revista, realiza várias coberturas internacionais, entrevistando de celebridades a líderes políticos. Antes dela, apenas Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, havia deixado o Brasil para dar a volta ao mundo como jornalista.

A publicação torna-se um importante espaço para a divulgação da produção cultural da época, mas também sofre acusações de conivência com as ações fascistas do salazarismo. Aos 20 anos, como parte da viagem internacional, Ruth entrevista António de Oliveira Salazar, que a tratou como uma filha pródiga de volta ao lar. Ovacionada em Portugal na época, posteriormente ela passou a contar a versão de que teria ido ao gabinete do ditador para matá-lo. Essa associação com a extrema-direita fez com que, mesmo uma década depois, quando encenava obras de Bertolt Brecht e posicionava-se com a esquerda contra a ditadura militar, sofresse questionamentos sobre suas convicções políticas.

A paixão pelo teatro, que a acompanhava desde pequena, começava a ganhar força no final da década de 1950, quando se casa pela segunda vez. Ao lado do dramaturgo Carlos Henrique Escobar, passa a se dedicar aos estudos de interpretação e se insere na cena teatral que pulsava em São Paulo, com a movimentação de jovens como José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi, Amir Haddad, Fauzi Arap, entre outros.

A partir de 1960, aproxima-se cada vez mais do teatro popular, abraça as vanguardas artísticas e se torna figura proeminente na cena teatral do Brasil, produzindo eventos como o Festival Internacional de Teatro, na década seguinte, que trouxe produções de diferentes países e ajudou na internacionalização do teatro brasileiro. Em 1964, inaugura o Teatro Ruth Escobar, que se tornaria um espaço de referência para produções contestadoras, como Roda viva, com direção de José Celso, que em 1968 teve sua apresentação invadida e depredada pelo Comando de Caça aos Comunistas.

Contestadora e articulada, Ruth se opôs à ditadura, utilizando também seu prestígio e conexões para dialogar com o regime e pleitear por mudanças. A artista também foi figura seminal na reabertura política do país e, na redemocratização, quando assume papéis institucionais, sendo eleita deputada estadual por São Paulo.

“Como uma mulher sem pai reconhecido, sem sobrenome ou profissão reconhecida, Ruth aprendeu a não ter medo das figuras de poder e a impor sua personalidade. Ela se valeu do seu talento e educação para não se diminuir e reivindicar verbas públicas para a atividade teatral e a educação. Desde a década de 1950, ela falou com todos os presidentes brasileiros, com exceção de Médici e Figueiredo. Ela dialogava com as cartas em cima da mesa e chegou a cogitar colaborar com a luta armada contra a ditadura, após o AI-5. Ela também dirigiu a linguagem teatral para uma questão política, lutando pela anistia com trabalhos como a peça Revista do Henfil, que foi um dos propulsores da campanha, afinal vitoriosa, pela anistia e a volta dos exilados. Quando entra na política de fato, ela tem um papel importante na luta feminista, em defesa da cultura”, enfatiza Alvaro.

MÁRCIO BASTOS é jornalista.

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