Crônica

As páginas em branco do menino Miguel

TEXTO Susana Mello

02 de Junho de 2021

Um ano depois...

Um ano depois...

Ilustração Augusto Tenório

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Era uma vez um menino chamado Miguel.
Assim começa uma história que deixou muitas páginas por escrever. Uma história que não teve um final feliz, muito pelo contrário, e que não era para ter acontecido assim.

Miguel era como as outras crianças: gostava de brincar, correr, conhecer coisas novas; era certamente buliçoso e treloso, como costumam ser as crianças.

Também como muitas crianças, para se sentir mais seguro e confiante, Miguel preferia estar por perto de sua mãe do que de pessoas que não lhe eram tão próximas.

Mas nessa sua história, como em todas aliás, também existiam pessoas não tão próximas dele. Muitas vezes, as pessoas menos próximas só têm cuidado, paciência e disponibilidade para aquelas de quem elas gostam ou de quem se sentem próximas. E esse costuma ser o começo da maior parte dos problemas de todas as histórias.

No mundo em que viveu Miguel, existiam muitas pessoas dessas que parecem só querer cuidar daquelas de quem se sentem próximas...

Mas com a mãe de Miguel era diferente, ela não cuidava só dos seus, ela também cuidava de vários outros – e outros que não eram assim tão próximos. Desses, ela cuidava da casa em que moravam, da comida que comiam, da limpeza da sujeira que faziam. Até o cachorro, que eles tinham, era ela que levava para passear.

Parecia até coincidência, mas não era: a avó de Miguel, mãe de sua mãe, também já fazia todos esses cuidados há muito tempo. Parecia até destino, mas não era pra ser. No mundo em que Miguel viveu, muitas pessoas não tiveram a escolha de fazer alguma coisa que fosse diferente do que os seus pais haviam feito. E, assim, muitas e muitas pessoas seguiram cuidando de pessoas menos próximas e isso acabou se tornando um tipo de trabalho.

E como trabalho é diferente de destino, esse tipo de cuidado precisou começar a ter algumas regras, a ficar mais organizado. Essas regras, muitas delas, serviam para lembrar de coisas simples como “no feriado não se trabalha”; “um trabalho tem hora pra começar e hora pra terminar”; “quem trabalha precisa receber um pagamento” e outras coisas assim.

No mundo em que Miguel viveu, parece que essas regras simples ainda não eram praticadas por todas as pessoas que eram cuidadas. Era como se elas ainda vivessem num antigamente bem distante... Nesse tempo bem antigo, as pessoas que eram cuidadas achavam que as pessoas que cuidavam tinham nascido para isso, ou pensavam que bastava dar o que comer, o que vestir e onde dormir e já estava tudo resolvido.

Voltando à história de Miguel, no dia em que ele voou para sempre, a sua mãe estava trabalhando para aquelas pessoas que ainda faziam como as de antigamente. A mãe de Miguel tinha levado o cachorro delas para passear e fazer suas necessidades lá embaixo. Enquanto isso, lá em cima, as necessidades de uma outra mãe eram bem outras: pintar as unhas, ficar bonita e, talvez, sair para passear.

E como as necessidades variam muito, principalmente quando as pessoas têm casas diferentes, gostos diferentes, trabalhos diferentes, pagamentos diferentes, passeios diferentes e cuidados diferentes, naquele dia não foi diferente. Miguel sentia a necessidade de sair dali de onde estava, talvez quisesse ir brincar lá embaixo, talvez quisesse ir encontrar sua mãe, talvez estivesse chateado por não ter podido ficar na sua casa, com sua mãe e sua avó – naqueles tempos, havia um vírus muito perigoso e todos deveriam ficar nas suas casas para se protegerem.

Não tem mais como saber, ao certo, por que Miguel quis tanto sair dali de onde estava. O fato é que ele tanto fez que conseguiu.

O que Miguel ainda não sabia era que, às vezes, as pessoas que não nos são próximas, quando sentem raiva, cansaço, abuso, pressa, irritação ou coisas do gênero, podem ficar ainda mais distantes, tão distantes que chegam a parecer que são de outro mundo... Tão distantes, que esquecem que os pequenos não sabem se virar sozinhos como os grandes; tão distantes, que esquecem que os pequenos, quando soltos num labirinto (sim, existem labirintos verticais), podem se sentir perdidos e sem chão; tão distantes, que chegam a parecer que perderam a cabeça, a noção, a compostura, a humanidade...

Talvez tenha sido para ficar longe disso tudo que Miguel insistiu em sair; insistiu em encontrar saídas e acabou se perdendo. Cada vez que a porta se abria, repetia-se o mesmo cenário: e não era ali. E parecia não chegar nunca aquele lugar em que a pessoa que queria próxima seria, enfim, encontrada.

Já sem chão e com a confiança por um fio, restou a Miguel inventar uma saída diferente, uma outra saída.

Mas não deu certo: a vida não tinha lhe dado asas...

Como Ícaro já perto do sol, Miguel voou seu último voo, derretendo de uma vez por todas a esperança de ver escritas as muitas páginas em branco dessa história.

E esse foi o final da trágica história de Miguel. Uma história na qual nenhum dos personagens vai ter a chance de seguir tentando ser feliz para sempre.

SUSANA MELLO, psicóloga e psicanalista associada ao Círculo Psicanalítico de Pernambuco (CPP).

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