Uma análise do frevo
Leia trecho do livro 'Frevo: transformações ao longo do passo', de Climério de Oliveira e Marcos FM, lançado pela Cepe Editora
TEXTO Climério de Oliveira Santos e Marcos FM
03 de Fevereiro de 2020
Passista no Carnaval do Recife de 1958
Foto Mário de Carvalho/Acervo do Museu da Cidade do Recife
[conteúdo na íntegra | ed. 230 | fevereiro de 2020]
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PRÓLOGO
Um fluxo musical que tem o vigor do frevo não nasce pronto, com suas convenções e categorias bem delineadas, tampouco tem um formato definitivo, como se o seu acabamento tivesse chegado ao máximo esmero. Esse trabalho discute uma gama de significações do frevo, algumas transformações no seu decurso histórico e o fazer musical dos frevistas na atualidade. O frevo não precisa justificar a sua importância através da demonstração e da comprovação de sua origem, da necessidade de resgate, da prova de que é uma “essência” da identidade de nação ou de pernambucanidade. Se nos prendermos a esses pressupostos, deixaremos de estudar e notar o manancial de significados que o frevo nos legou: a estética, o conhecimento sobre a sociedade, sobre a música e sobre a dança, as técnicas, as habilidades, as estruturas sonoras, as estratégias de ensino-aprendizagem, enfim, as múltiplas potencialidades de um fluxo musical.
Através do frevo, podemos compreender uma parte importante da história de Pernambuco, e ainda lançarmos-nos na criatividade, concedendo-nos a graça de trilhar novos caminhos sonoros e significativos. O frevo é um transdutor, por excelência e a sua potência maior se converte em alegria, solidariedade, sentido, vitalidade. Tudo isso ele proporciona aos que o fazem e dele fruem. É importante destacarmos que alegria/folia não é coisa banal; é estado de espírito relevante e também ato político de foliões e foliãs. Nos dias atuais, com o acirramento político que divide a sociedade brasileira (tema que este livro não focaliza e pouco menciona) e ante as agruras que acometem pessoas de vários estratos sociais, a pletora do frevo ganha ainda mais relevância, sendo revigorante para o Brasil e para o mundo.
Quando o(a) leitor(a) deparar-se com o metafórico termo fluxo musical no texto, pode ficar tranquilo(a), pois não é nada demais e, caso deseje obter uma discussão teórica sobre esse e outros conceitos e ideias aqui colocados, há literatura pertinente e facilmente acessível
Os músicos das práticas de fronteira fazem trabalhos que não são comumente feitos no âmbito do gênero musical. Este, o gênero, é um conjunto de práticas, sons e conceitos reconhecidos pelos frevistas. O gênero musical se sustenta na convenção; o fluxo musical se configura como uma totalidade que inclui não só a convenção como o marginal, o estranho, o incômodo e até mesmo o contrafluxo. Portanto, só para exemplificar, se um artista se aventurar a realizar uma composição com buzinadas de vários automóveis e publicar o resultado como sendo um frevo, ele estará atuando no fluxo do frevo. Se ele vai ter sucesso com isso, se vai sobreviver ou se — como aponta Howard Becker
Para buscarmos a compreensão dessa cultura musical em fluxo, nós não adotamos um arcabouço teórico preexistente. No entanto, por termos uma ligação com a etnomusicologia, “naturalmente” lançamos mão de algumas de suas técnicas, metodologias e conceitos, tanto para efetivar o trabalho de campo etnográfico, a observação vivencial, como o levantamento de dados e as análises. O nosso campo de pesquisa etnográfica tem sido nas cercanias do nosso próprio local de moradia e, portanto, de convivência: Recife, Olinda e adjacências. Sob tais condições, desenvolvemos não uma pesquisa sobre o outro. Nós, os autores, já tocávamos e compúnhamos frevos muito antes de nos conhecermos. Depois de alguns anos tocando frevo e outras músicas, começamos a dialogar sobre a possibilidade de fazermos este trabalho. Portanto, tivemos contra nós as dificuldades de efetivar aquele distanciamento (epistêmico?) que muitas vezes a pesquisa acadêmica exige de quem a faz
Orquestra de bloco, imagem integrante da Coleção Alexandre Berzin (décadas de 1940 e 1950). Foto: Alexandre Berzin/Acervo do Museu da Cidade do Recife
Nós batizamos o nosso principal procedimento de trabalho de campo com a alcunha de observação vivencial, parafraseando a expressão observação participante, citada pelos trabalhos referenciados em Malinowski e seus seguidores. Com isso, não temos a pretensão de lançar uma nova perspectiva e menos ainda de revolucionar [risos] a tradição etnográfica antropológica e etnomusicológica, mas tão somente de expressar com a palavra que julgamos mais precisa esse nosso modo de fazer vivenciando, que assim resumimos: nós pesquisamos o frevo e ao mesmo tempo compomos; ensaiamos e tocamos o frevo profissional e ludicamente. Assim, não apenas participamos dos grupos de “nativos observados” — como os pesquisadores costumavam enquadrar os fazedores —, mas também tocamos, durante a pesquisa, o nosso próprio trabalho musical que já fazíamos, o qual continuamos fazendo agora.
A pesquisa voltada para este livro começou no início do ano de 2015. Além das entrevistas e conversas, fizemos várias sessões de escuta/audição compartilhada e presenciamos performances ao vivo, a saber: saídas de agremiações e orquestras (em cortejo pelas ruas), apresentações de grupos de palco e ensaios. Essas escutas analíticas eram realizadas tanto apenas por nós como incluindo especialistas em frevo: músicos(as), passistas, foliões(ãs), jornalistas, pesquisadores(as) e até mesmo pessoas não ligadas ao frevo.
Escuta compartilhada é uma técnica de pesquisa bastante simples de entender se pensarmos neste passo a passo: deve-se discutir alguns procedimentos éticos em relação às pessoas que serão envolvidas, traçar os objetivos da escuta, pré-selecionar uma parte das músicas a serem escutadas e as ocasiões e os lugares de performance em que serão presenciadas, selecionar as pessoas que vão participar de cada sessão de escuta, solicitar que elas indiquem músicas a incluir na escuta, elaborar questões, realizar os encontros e registrá-los (gravar, filmar, anotar), analisar os dados e, por fim, relatar tais audições. Algumas das nossas questões foram: quais os momentos em que o frevo passou por mudanças? Quais foram essas mudanças? Como, quando e por quem as mudanças, categorias, regras e convenções foram estabelecidas? Quais são os elementos técnico-musicais do frevo praticados hoje? Quais são os seus significados? Como o frevo é feito hoje? O que é ou não é considerado “tradicional” ou “moderno”? (vale assinalar que, sempre que oportuno, colocamos aspas nos termos tradicional e moderno, pois estes são muitas vezes utilizados como qualificativos ou valorativos pelas pessoas do contexto pesquisado, e nós preferimos não corroborar tal significação). As questões colocadas não são totalmente respondidas no livro, mas elas nos ajudaram no mínimo a dialogar e a encontrar pistas para as respostas e para outras indagações.
A leitura de escritos acadêmicos (e não acadêmicos) foi sumamente importante para a nossa pesquisa. Os materiais lidos forneceram subsídios para a compreensão de ocorrências históricas, de músicas escutadas e analisadas, etc., o que, consequentemente, elucidou questões sobre a música nos dias atuais. Não à toa, adotamos o subtítulo “transformações ao longo do passo”, aludindo a uma ambivalência do termo passo, que aqui remete, principalmente, aos passos históricos que se revelam em mudanças/transformações, mas que não deixa de aludir também à dança do frevo. As buscas em acervos jornalísticos e em periódicos foram importantes, uma vez que estas nos possibilitaram a investigação por um prisma diacrônico, ligando fatos históricos relacionados ao frevo. Por outro lado, procuramos equilibrar tal diacronicidade com o sentido sincrônico, levado a cabo através das escutas compartilhadas e do trabalho de campo, através do qual mergulhamos no “aqui e agora” das pessoas fazendo o frevo.
A FÁBRICA DE DISCOS ROZENBLIT
Insatisfação com as gravadoras do Sudeste
Nos anos 1950, o frevo pernambucano vai ocupar mais espaço na indústria fonográfica, vai extrapolar as fronteiras do Recife e de Olinda e alcançar o interior de Pernambuco e vários estados do Brasil, enfaticamente os da Região Nordeste. Mas não foi de graça, nada foi fácil para o frevo: nem a consolidação dentro do próprio território, nem os seus logros Brasil afora. Os primeiros discos de frevo foram gravados no Rio de Janeiro, então capital brasileira e onde as primeiras gravadoras estavam concentradas.
Em Pernambuco, nos anos 1950, o compartilhamento e o consumo de músicas locais tornaram-se habituais, atingiram um certo vigor; a grande indústria do disco já estava engendrando a estética transnacional
A circulação existia, mas era exígua e inflava a insatisfação de frevistas pernambucanos. Em 1949, uma pesquisa produzida pela empresa Publicidade & Negócios
Em algumas ocasiões, foram enviados experts de Pernambuco para participar da produção musical durante as gravações, como o Maestro Zuzinha e Teófilo de Barros Filho (diretor artístico da Rádio JC). Tais missões ocasionalmente surtiram resultados satisfatórios. Mas nem sempre era possível enviar um especialista para o Rio de Janeiro, e os reclamos continuaram e aumentaram gradativamente. Os reclamantes apontavam problemas no instrumental utilizado (muitas vezes sem o surdo e o tarol/caixa), no padrão rítmico da percussão
Instalações da Fábrica Rozenblit, na Rua Imperial, no Recife. Foto: Acervo do IBGE
Os reclamos se estendiam ainda às desvantagens dos compositores pernambucanos em relação aos cariocas no mercado fonográfico, aos atrasos nas entregas — pelas gravadoras — das partituras e dos discos de frevo produzidos no Rio de Janeiro, ao pagamento de direitos autorais, etc. Tais insatisfações serão compartilhadas por diversos profissionais envolvidos na cadeia da música e irão convergir no sentido da criação de melhores e mais sustentáveis condições para a produção fonográfica em Pernambuco.
Além das 78 rotações que as gravadoras sudestinas vinham lançando desde 1923 com a seminal Borboleta não é ave, de Nelson Ferreira e J. Borges Diniz, a RCA Victor lança o ousado LP Frevos com Zaccarias e sua Orquestra, em 1955 (ano em que a Fábrica Rozenblit vai começar de fato a fazer uma grande diferença). O referido LP traz alguns dos mais festejados frevos de rua de então, entre eles: Frevo dos Vassourinhas (a marcha nº 1 do lendário clube), Freio a óleo (de José Menezes, que tinha vencido um concurso local), Isquenta muié (de Nelson Ferreira) e Fogão (de Sergio Lisboa); todos esses viriam a ser clássicos do gênero. Vale destacar uma inovação que Nelson agregou em Isquenta muié, frevo que, segundo Hugo Martins
O surgimento da Fábrica Rozenblit e o selo Mocambo
Um impacto significativo nesse período deveu-se à gravadora Rozenblit, fundada oficialmente em 1954, por José Rozenblit, um comerciante filho de judeus descendentes de romenos. Homem envolvido com a música popular pernambucana, principalmente o frevo, José percebeu que havia uma demanda reprimida num mercado parcamente explorado pelas gravadoras do Sudeste. O selo Mocambo
Antes mesmo da formalização da empresa, a Rozenblit, utilizando o estúdio da Rádio Clube, realizava algumas gravações. Sob a direção artística de Nelson Ferreira, a gravadora produziu, então, um disco 78 rpm, tendo, no lado A, o frevo-canção Boneca, de José Menezes e Aldemar Paiva, interpretado por Claudionor Germano, e, no lado B, o instrumental Come e dorme, composto pelo referido diretor. O disco foi lançado pelo selo Mocambo, para o Carnaval de 1953. Esse disco é importante, pois traz as duas primeiras gravações de frevo feitas em Pernambuco, dirigidas e interpretadas por pernambucanos especialistas na referida música. Certamente, o processo de produção envolveu decisões acerca de como o frevo deveria ser executado, como deveria soar, um debate que começara desde o início das gravações de marchas pernambucanas no Rio de Janeiro.
A audição compartilhada que realizamos a partir de um fonograma com Boneca e Come e dorme nos revelou dados curiosos, a começar pelas batidas rítmicas, que transcrevemos (Figuras 89 e 90). A primeira traz um padrão rítmico de caixa que totaliza dois compassos, propulsionando o ciclo que costuma ser chamado de groove (em jazz, rock e tantas outras músicas); já as pancadas da caixa são em colcheias (na caixa de hoje, a divisão costuma ser em semicolcheia, ou seja, as pancadas são duas vezes mais segmentadas do que a dessa gravação de Boneca. Outra diferença é que a acentuação se encontra na segunda metade do primeiro tempo do segundo compasso (ou 3º tempo do groove), sendo que, hoje em dia, o acento é executado na segunda semicolcheia desse mesmo tempo). O pandeiro e o surdo apresentam padrões idênticos aos praticados ainda hoje. Na gravação de 1953, foi utilizada tuba. Em 1978, o Maestro Mário Mateus gravou Boneca utilizando baixo elétrico. Mário Mateus é citado por José Teles (2015) e por Ítalo Guerra Sales
A segunda música citada, no lado B do disco, é um frevo de rua do tipo “o frevo que eu queria ter feito” (explicaremos esse qualificativo mais à frente). Trata-se de Come e dorme, uma homenagem de Nelson Ferreira ao Clube Náutico Capibaribe (de futebol), referindo-se ao segundo quadro de jogadores (reservas), que, segundo Samuel Valente
Em 1954, o fundador José se associa a mais quatro pessoas (os seus irmãos Isaac, Luiz e Adolfo Rozenblit, além do amigo Kurt Sondheim), e, juntos, implantam a moderna Fábrica de Discos Rozenblit
A Rozenblit não tinha o frevo e os demais ritmos regionais como principais produtos comerciais. Os artistas de músicas pop e as estrelas do rádio do Sudeste eram os que proporcionavam o maior volume de vendas da companhia. A distribuição de artistas do pop internacional foi fruto das parcerias que a gravadora pernambucana celebrou com selos estrangeiros, como os estadunidesnses Mercury Records (da Universal) e Seeco (focado na difusão de música latino-americana nos EUA), que, antes da implantação da gravadora, já eram fornecedores da Loja do Bom Gosto, de propriedade dos irmãos Rozenblit. Contudo, o mercado de músicas regionais — frevo no topo — foi marcadamente impulsionado por esta gravadora, que contratou para a direção artística o Maestro-compositor Nelson Ferreira, do qual incluía muitas composições no seu catálogo de produtos fonográficos. As músicas selecionadas para o catálogo da gravadora teriam que passar pelo crivo de Nelson Ferreira, que passou a ser, de então até o fechamento da Rozenblit, o maior responsável pela triagem do frevo.
No suplemento de 78 rotações em que o Mocambo listou as músicas gravadas para o Carnaval de 1957, constavam, entre outras, Vassourinhas
A Evocação do sucesso
Seduzidos pelo mercado de discos do Sudeste brasileiro, Nelson Ferreira e os executivos da Rozenblit classificaram Evocação como marcha-carnavalesca, uma categoria genérica que já era consagrada. A melodia vocal da composição condiz com o rótulo genérico assumido, ao passo que a melodia da sua introdução, o coro feminino, a letra e os acentos caracterizavam aquelas que já eram categorizadas como marchas de bloco. Apesar de ter sido colocada no lado B do disco, surpreendentemente
Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon,
Cadê seus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apôis Fum
Dos Carnavais saudosos [...].
O enunciante, ou seja, o personagem que fala no interior da canção, evoca blocos do passado e as pessoas que os fundaram e os dirigiram. Naquele momento em que a marcha foi lançada, não mais existiam os blocos e nem as pessoas citadas. Desse modo, o autor da música lançou mão da nostalgia, sensação de saudade ativada por lembranças de momentos felizes e antigos relacionamentos, provocada através da evocação de pessoas/situações/lugares vivenciados no passado (ou idealizados), associada a um desejo sentimental de regressar, de voltar no tempo, um tempo que se foi, perdido. É importante notar que o “regresso” tem uma dupla significação na narrativa das marchas de bloco: o regresso ao passado e o regresso à sede do bloco logo após a saída. Por isso mesmo, muitas são designadas como marcha de recolher, marcha de regressar, ou marcha-regresso. Nelson Ferreira agregou ainda outro modo de provocar a saudade nos ouvintes ao utilizar incidentalmente o seguinte trecho “Adeus, adeus, minha gente / Que já cantamos bastante [...]”, extraído da primeira frase do refrão da marcha intitulada Regresso, que Raul Moraes e o letrista G. Dutra tinham composto em 1924 (Nelson Ferreira substitui “boa gente”, da letra original, por “minha gente”). Já a nostálgica proposta de regresso ao passado narra algumas ocorrências históricas menos explícitas na letra: a queda do Carnaval de rua e a vindoura revitalização do Bairro do Recife e dos arredores, que empurraria para a periferia da cidade muitas pessoas ligadas às agremiações. Futuramente, até o próprio Nelson Ferreira teria a sua casa desapropriada em prol da modernização da rua em que morava, o que o tornaria ainda mais saudosista e nostálgico.
Se o sucesso de Evocação surpreendeu os executivos da Rozenblit, foi porque eles não tinham em mente a dimensão em que saudosismo e nostalgia, dois dos ingredientes utilizados, ainda estavam entranhados na vida social brasileira naquele período. Valores associados a esses sentimentos já tinham sido bastante difundidos anteriormente pela modinha e, então, pelo baião gonzaguiano e pelo samba-canção
É importante ter em conta que, no que tenha pesado o sucesso de Evocação para o saudosismo e o lirismo tornarem-se parte da convenção do frevo de bloco, ela não foi a marcha de bloco pioneira nesse quesito. Uma prova evidente é Despedida, de Raul Moraes, composta em 1937, que tem o seguinte refrão:
[...]
Essa canção saudosa
Há de fazer chorar
Sempre a recordar nossa gente buliçosa
De regresso a cantar.
Contudo, é o sucesso da marcha Evocação que vai fertilizar o terreno para o surgimento de outras marchas de bloco líricas, nostálgicas e saudosistas, algumas das quais se tornariam clássicas, como Regresso dos donzelinhos (Lídio Francisco da Silva), Vamos regressar (João Santiago), Último regresso (Getúlio Cavalcanti), Valores do passado e Saudosos foliões (as duas últimas de Edgard Moraes). Discutimos mais esses e outros elementos na parte que trata dos aspectos técnicos do frevo de bloco.
Apogeu e declínio da Rozenblit
A Rozenblit deu mais uma cartada bem-sucedida ao lançar três LPs no ano de 1959 para o Carnaval de 1960. O principal deles foi Capiba 25 anos de frevo, coletânea com as músicas carnavalescas de Lourenço Barbosa que tinham sido gravadas por diversos cantores brasileiros, desde 1934, quando venceu um concurso com É de amargar. As 25 canções, uma representativa de cada ano de carreira, foram interpretadas por Claudionor Germano acompanhado pela orquestra de Nelson Ferreira. A sequência das músicas foi organizada em seis pot-pourris, e o primeiro deles inicia-se com o toque da clarinada, ao que se seguem: É de amargar, Tenho uma coisa pra lhe dizer, Manda embora essa tristeza e Quem vai pra Farol é o Bonde de Olinda. O disco pode ser ouvido e a sua capa também pode ser visualizada através da internet
Outro álbum que a gravadora lançou no mesmo ano daquela homenagem a Capiba foi o LP O que eu fiz e você gostou – Carnaval cantado de Nelson Ferreira, com as músicas também interpretadas por Claudionor Germano, acompanhado pela orquestra do maestro-compositor homenageado. O álbum soma 23 músicas cantadas dentre as que foram compostas por Nelson Ferreira desde a sua primeira música carnavalesca lançada, Borboleta não é ave (1923), até Evocação (1957), sendo várias delas em parceria com outros compositores. No rastro do exitoso disco do seu rival, Nelson Ferreira também organizou a sua coletânea em seis pot-pourris, tendo no primeiro: Borboleta não é ave, Não puxa, Maroca!, Dedé e O dia vem raiando. O LP antológico de Nelson Ferreira, embora não tanto quanto o de Capiba, também foi bem-sucedido. Completa o repertório de LPs daquele ano emblemático da Rozenblit a coletânea Capital do frevo – Volume 3, que reuniu composições nas três modalidades de frevo, de vários compositores.
Com a repercussão que tiveram, os LPs de Capiba e de Nelson Ferreira deram relevo especial à carreira de Claudionor Germano e posicionaram a voz desse cantor como um referencial no frevo. Claudionor Germano afirma que começou a cantar profissionalmente em 1947, no grupo Azes do Ritmo, substituindo o então cantor Luiz Bandeira (1923–1998), que também comporia canções que circulariam nacionalmente, de vários gêneros, entre elas os frevos É de fazer chorar (Copacabana, 1957) e Voltei, Recife (Continental, 1958), dois standards. Naquele momento, as vozes que mais reverberavam no Brasil eram as de grupos vocais, como Quatro Ases e Um Coringa, Anjos do Inferno e Trio de Ouro, bem como o canto sentimental dos famosos crooners, como Augusto Calheiros (que gravou Lalá (1931), de Nelson Ferreira), Francisco Alves (que gravou A lua veio ver (1931), dos Irmãos Valença), Mário Reis (É de amargar (1933), de Capiba), Orlando Silva (Frevo da felicidade (1967), de Capiba) e Carlos Galhardo (O frevo é assim (1945), de Nelson Ferreira). Todos eles eram alinhados com o canto operístico e com o jazz estadunidense. Em que pesem tais referências, Claudionor Germano (assim como Expedito Baracho) procurou registrar em disco uma interpretação que respaldasse a ligação da música com o passo do folião. Não à toa, ele foi apadrinhado por Nelson Ferreira e considerado um avanço para a constituição do frevo enquanto gênero musical, pois, na década de 1940, a grande maioria dos frevos cantados era gravada pelos cantores ligados ao rádio e às gravadoras do Sudeste. E, como foi discutido anteriormente, os autores e vários outros adeptos do frevo pernambucano reprovavam a interpretação de suas músicas por aqueles cantores, rotulando-a de “frouxa”. Convidamos o(a) leitor(a) a comparar, por exemplo, algumas das gravações dos mencionados frevos feitas pelos citados cantores e por Claudionor Germano. Antes de gravar os dois referidos discos, ele era conhecido como cantor de músicas carnavalescas. Esses dois álbuns e os dois citados a seguir contribuíram decididamente com a consagração de Claudionor Germano como “cantor de frevo”, o mais prestigiado em todo o Nordeste, e, claro, estabeleceram a sua voz como referência do frevo cantado.
No ano de 1960 (para o Carnaval do ano seguinte), a Rozenblit lança mais um LP de Capiba e outro de Nelson Ferreira, ambos com frevos cantados por Claudionor Germano (e com a mesma orquestra). Embora esses dois álbuns não tenham alcançado o sucesso dos dois primeiros, eles são importantes porque, apesar de incluírem regravações, lançam também músicas inéditas e outras pouco conhecidas, além de composições dos dois signatários que, como bem analisou José Teles
Como bem discutiu o etnomusicólogo estadunidense Larry Crook
Quanto à apontada polarização, como todos aqueles compositores selecionados pelos dois álbuns faziam parte da consagrada velha guarda, muitos da nova geração manifestaram uma grande insatisfação, acusando a gravadora de viver de frevos do passado, de protecionismo a Capiba e, principalmente, a Nelson Ferreira, que, por razões óbvias, levou a pecha de “o dono da música”. Essa insatisfação continuaria crescendo por vários anos. Em resposta, José Rozenblit e Nelson Ferreira justificaram-se publicamente através da imprensa e tentaram mostrar que a nova geração de compositores também estava sendo contemplada. E, de fato, a Rozenblit foi instada a repensar as suas práticas. Os novos autores agora também contavam com a demanda das gravadoras do Sudeste, que, depois do boom de Evocação, passaram a lançar mais discos de frevo. Em meados dos anos 1960, ela se transforma numa das maiores gravadoras do Brasil, e o frevo, como produto fonográfico, atinge o seu mais alto volume de vendas. A essa altura, no segmento do frevo, a gravadora recifense já havia superado a RCA Victor, que, como vimos anteriormente, foi a primeira companhia a produzir discos de frevo para o Carnaval de Pernambuco.
A Fábrica de Discos Rozenblit enfrentava uma série de dificuldades financeiras, em parte agravadas pelas multinacionais concorrentes, mas também por não ter acompanhado mudanças no mercado e nas tecnologias e ainda por ter acumulado processos trabalhistas. Às referidas crises financeiras, somaram-se os imensos prejuízos advindos de uma sequência de enchentes ocorridas no Recife, nos anos 1966, 1967, 1970, 1975 e 1977 (a primeira e a penúltima, as mais catastróficas). E, mesmo após a enchente letal (em 1975), a companhia continuou lançando LPs importantes, como Os cabras de Lampião (Passarela, 1979), que reúne 12 frevos de rua compostos por Lourival Oliveira, entre os anos de 1960 e 1979. As avarias foram desastrosas, acometendo a planta industrial, os arquivos e os estoques da fábrica, levando a empresa a cambalear por mais alguns anos e a fechar as portas no ano de 1983. Contudo, a Rozenblit e os músicos com ela envolvidos marcaram de modo indelével as feições do frevo.
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA SANTOS é músico e etnomusicólogo com doutorado em Música pela UniRio; professor do Conservatório Pernambucano de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música pela UFPE. Lançou quatro livros pela coleção Batuque Book (Cepe Editora).
MARCOS FM é músico com formação em Licenciatura em Música pela UFPE, professor do Conservatório Pernambucano de Música e do Centro de Educação Musical de Olinda (Cemo), integra a Orquestra Quebramar. Publicou três livros pela Cepe Editora (Arranjando frevo de rua, 2017; Arranjando frevo de bloco, 2019; e Arranjando frevo-canção, 2020).
Vídeo - Maestrinhas do frevo