Crítica

Polanski e o retrato da pós-verdade

Em seu novo filme, 'O oficial e o espião', cineasta reconstitui Caso Dreyfus, episódio que abalou a França no final do século XIX

TEXTO Débora Nascimento

12 de Março de 2020

Jean Dujardin (Picquart) em cena do filme 'O oficial e o espião', que estreia no Brasil

Jean Dujardin (Picquart) em cena do filme 'O oficial e o espião', que estreia no Brasil

Foto Divulgação

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“Não há mais verdade, agora existe o que chamamos de pós-verdade. Apenas emoções importam. A verdade histórica ou científica não tem importância. Dizemos que algo é verdade porque nos convém. Isso é muito triste. Eu não acho que a verdade histórica ou científica tenha uma oportunidade em nossas sociedades”, afirmou Roman Polanski, em uma de suas raras entrevistas, desta vez para o jornal O Globo, publicada no dia 1º de janeiro. A declaração do cineasta francês condiz com o mundo contemporâneo, no qual fake news, meias-verdades, julgamentos levianos, revisionismos oportunistas e a mais descarada negação da história e da ciência confundem a opinião pública e pautam ações governamentais, midiáticas e comportamentais.

A fala do diretor tem relação direta com o lançamento de seu mais novo filme, O oficial e o espião, que estreou no Brasil na quinta-feira (12/3). O título em português (e em inglês) não tem relação direta com o original francês, J'accuse (“Eu acuso”), referente ao artigo escrito por Émile Zola, publicado no jornal L'Aurore, em 13 de janeiro de 1898. Por conta dele, o escritor foi julgado, condenado e exilou-se de seu país. Nele, o autor acusou nominalmente a lista de envolvidos no processo e julgamento do oficial de artilharia do exército francês Alfred Dreyfus, condenado à prisão perpétua, em uma apressada corte marcial em 1894, por espionagem em favor da Alemanha e traição à França.

Dreyfus, interpretado por Louis Garrel (quase irreconhecível pela maquiagem), foi enviado à prisão de segurança máxima na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Seu martírio é narrado em cartas. Por ironia do destino, sua sorte foi que as correspondências dos oficiais eram interceptadas e espionadas pelo departamento de inteligência do Exército. E, nesse contexto, ingressou o personagem que Polanski escolheu para ser o protagonista do filme, em vez de Dreyfus: o novo chefe do setor, o coronel Georges Picquart (interpretado com altivez por Jean Dujardin, de O artista), que promoveu mudanças no processo de coleta e análise dos papéis espionados.

Ao ler as interceptadas cartas de Dreyfus, Picquart, que também é antissemita, resolve defender Dreyfus porque considera que essa seria a atitude ética a ser tomada por ele e pelo Exército. Ao mesmo tempo em que se compadece do sofrimento do prisioneiro, faz a descoberta que muda o curso da história narrada no filme. A investigação de Picquart é detalhada por Polanski numa narrativa fiel aos acontecimentos.

Todos os personagens são reais, assim como os diálogos, montados a partir de declarações documentadas, resultado de um extenso trabalho de pesquisa que reconstituiu esse rumoroso caso que abalou a imagem austera do exército francês e expôs o antissemitismo nas forças armadas e no país. A partir dessa revelação, Picquart percebe o quanto o processo foi deliberadamente marcado por xenofobia. No entanto, a tentativa de reverter a injustiça volta-se contra os justos. E vão sendo revelados os artifícios do alto escalão para impor seu poder e sua vontade aos subalternos. O tema do abuso de poder já havia sido retratado pelo cineasta no claustrofóbico Uma simples formalidade (1994).

Polanski, que, na maior parte de sua filmografia, costuma narrar histórias contemporâneas, fez uma longa viagem ao passado, bem antes da Primeira e da Segunda Guerra – quando ele, judeu, foi testemunha e vítima do antissemitismo (que novamente assombra a Europa). Teve sua família destruída por causa da perseguição nazista. O pai parou num campo de concentração, saiu vivo, mas se casou e passou a viver com outra mulher; a irmã fugiu para Paris e a mãe foi presa e morta, quando estava grávida – a propósito, a primeira gravidez próxima de Polanski que acabou em tragédia; a segunda foi a da sua esposa, a atriz Sharon Tate, assassinada na chacina da seita de Charles Manson, em Los Angeles, em 1969. Esse trágico episódio permeia o filme Era uma vez... em Hollywood, de Quentin Tarantino. Polanski estava em Londres trabalhando no roteiro de um novo filme, enquanto Sharon voltou aos Estados Unidos de navio, pois o casal pretendia que o filho nascesse lá.

Nesse período, ele se viu pela primeira vez às voltas com a Lei. Antes de ser descoberto o autor intelectual da chacina que acabou com o clima de paz e amor em Hollywood, as suspeitas da morte da atriz foram destinadas ao cineasta. A imprensa e os investigadores insinuaram que o marido teria algo a ver com o assassinato. Nesse contexto, pesou a sinistra coincidência de que seu então mais recente filme, O bebê de Rosemary (1968), envolvia também uma mulher grávida, ritual satânico e faca. Após o lamentável ocorrido, o cineasta, que estava em ascensão, caiu em depressão. Voltou a ganhar reconhecimento com Chinatown (1974). E seu filme seguinte, O inquilino (1976), parecia o prenúncio da fase sombria em que o diretor ingressou: um homem dividido entre a imagem pública e a obscura vida pessoal.

Em março de 1977, Polanski passou de heroico sobrevivente do antissemitismo, cujo testemunho desembocou no aclamado O pianista (2002), a abjeto pedófilo e estuprador. Após denúncia da jovem modelo Samantha Geimer (13 anos), ele, com 44 anos, confessou ter embebedado e feito sexo sem consentimento com a menor, durante uma sessão de fotos para a Vogue francesa, na casa de Jack Nicholson (o ator estava viajando e sua então namorada Anjelica Huston tinha saído temporariamente).

O diretor chegou a ser preso, mas, ao aguardar o julgamento em liberdade, fugiu dos Estados Unidos antes que fosse condenado e passou a viver em exílio na França, onde havia nascido. Décadas depois, Samantha declarou publicamente que o perdoou, mas teve negado pela Justiça o pedido de retirar a acusação – para ela, seria uma forma de a mídia deixá-la em paz. Recentemente, mais quatro mulheres denunciaram que haviam sido abusadas sexualmente por ele em outras ocasiões. Essas quatro novas acusações, que surgiram após sua rumorosa prisão em 2009, em Zurique, são negadas por ele, que alega serem mentiras.

Em meio a esse contexto, é inevitável cogitar que o filme O oficial e o espião tenha sido feito como uma alegoria da própria história do cineasta: não o judeu perseguido pelos xenófobos, mas o acusado “perseguido pela imprensa”. No entanto, não há paralelo entre Alfred Dreyfus e Roman Polanski. O primeiro era inocente, enquanto o cineasta confessou seu crime e acredita que já pagou pelo seu erro porque: pediu perdão a Samantha Geimer, passou alguns dias detido, não pode voltar aos Estados Unidos e convive com a vergonha diante dos dois filhos. Ele relatou isso no documentário Roman Polanski: A filme memoir (2011), de Laurent Bouzereau.

Já a sua negação das novas acusações de crimes sexuais pode transformar essas outras mulheres, aos olhos da opinião pública, em possíveis oportunistas, pois, ao contrário da primeira acusação, não houve a confirmação do homem. E aí reside mais uma injustiça, dessa vez relacionada ao machismo. Repetindo o que o próprio Polanski afirmou: “Não há mais verdade, agora existe o que chamamos de pós-verdade. Apenas emoções importam. A verdade histórica ou científica não tem importância. Dizemos que algo é verdade porque nos convém”.

Um adendo: é irônico que essa afirmação de Polanski tenha sido dada a O Globo, veículo que divulgava, com afinco, as notícias da Lava Jato, uma outra rumorosa investigação policial/processo judicial totalmente contaminada de segundas intenções e cheia de brechas, que, assim como o Caso Dreyfus na França, marcou a história do Brasil. A matéria do jornal Caso Bancoop: triplex do casal Lula está atrasado foi usada como prova contra o ex-presidente no julgamento que o levou à prisão. No dia 9 de setembro de 2016, o procurador Deltan Dallagnol enviou a seguinte mensagem, descoberta através de espionagem de hackers e publicada pelo Intercept em 2019: “Até agora tenho receio da ligação entre Petrobras e o enriquecimento [de Lula], e depois que me falaram, tô com receio da história do apartamento”. Logo em seguida, ao descobrir a existência da reportagem, escreveu: “Tesão demais essa matéria do O Globo de 2010. Vou dar um beijo em quem de vocês achou isso”.

No confuso contra-ataque contra o Intercept, Deltan e Sérgio Moro alegaram que essas mensagens eram falsas, assim como foi questionada a autenticidade das provas apresentadas por Picquart em defesa a Dreyfus – a comprovação da ciência, que viria através do testemunho de um grafólogo (Mathieu Almaric, de O escafandro e a borboleta, de 2007), revelou-se corrupta.

No dia 28 de fevereiro deste ano, na cerimônia de premiação do César (espécie de Oscar francês), no qual o filme liderou as indicações (12), Polanski recebeu o prêmio de Melhor Direção. No momento do anúncio, a atriz Adèle Haenel (Retrato de uma jovem em chamas, 2019) retirou-se da plateia. Ela havia acusado outro diretor, Christophe Ruggia, de tê-la assediado entre 2001 e 2004, quando tinha entre 12 e 15 anos, e sentiu-se ofendida com a honraria ao cineasta.

Com orçamento de 25 milhões de euros, O oficial e o espião levou 1,5 milhão de espectadores franceses ao cinema e, embora tenha no título original o nome do artigo escrito por Émile Zola, que provocara uma revisão do processo de Dreyfus, o filme é uma adaptação do romance An officer and a spy (2013), do escritor inglês Robert Harris, que coescreveu o roteiro com Polanski – a mesma parceria ocorreu em O escritor fantasma, de 2010, que continua a ser o último filme surpreendente do diretor.

Apesar de O oficial e o espião ser um trabalho de direção rigorosa e esmerada, realizando uma perfeita mistura entre drama e policial, ele peca por não dar uma maior dimensão humana a seus personagens principais. É louvável o esforço do ator Jean Dujardin, mas, provavelmente pelas limitações documentais, não foi entregue a ele informações que proporcionassem um mergulho profundo no protagonista.

Curioso observar que Polanski tenha escolhido fazer um filme cuja história é permeada, em quase sua totalidade, por homens. A única mulher que aparece na tela é a amante de Picquart, interpretada pela esposa do cineasta, a atriz Emmanuelle Seigner, que protagonizou os filmes anteriores do marido, A pele de vênus (2013) e Baseado em fatos reais (2017). Será que outras atrizes vêm negando trabalhar com o diretor? Em 2009, quando ele foi preso, um manifesto contra sua prisão foi assinado por 138 pessoas ligadas ao cinema, dentre elas Natalie Portman, Tilda Swinton, Isabelle Huppert, Penelope Cruz e Monica Bellucci. Porém, isso foi antes de outras denúncias virem a público e antes de as redes sociais esquentarem, requentarem e conduzirem as questões graves e as controvérsias no mundo contemporâneo, influenciando, inclusive, a mídia.

“Não separo o homem da arte”, afirmou Lucrecia Martel, cineasta argentina e presidente do júri do Festival de Veneza de 2019, ao ser questionada em uma entrevista coletiva sobre O oficial e o espião, em agosto de 2019. O filme estreou sob protestos de feministas no festival, onde recebeu quatro estatuetas: o Leão de Prata (dado pelo júri), o Prêmio da Crítica, além de uma premiação dedicada à sua mensagem social e outra pela produção sustentável. A diretora acrescentou que não participaria do jantar de gala em homenagem ao longa, mas defendeu a decisão do evento de programá-lo. Mais uma declaração para engrossar o caldo efervescente da discussão sobre se deve haver ou não distinção entre autor e obra. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente e colunista da Continente Online.

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