FOTOS CAROL QUINTANILHA/DIVULGAÇÃO
22 de Novembro de 2018
Artista-ativista chinês é o ponto central da exposição, sem o qual a articulação dos elementos perde o sentido
Foto Carol Quintanilha/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online | nov 2018]
Em uma das frases plotadas nas paredes da exposição Raiz, a maior individual de Ai Weiwei até agora (e sua primeira no Brasil), o artista define que, por ser uma esfera, o mundo não se divide em Oriente e Ocidente. Este seria um conceito ultrapassado. Mas o sabor da mostra, em cartaz até 20 de janeiro na Oca (SP), reside exatamente nas clivagens que o artista e ativista chinês (filho de um poeta perseguido pela ditadura de Mao Tse Tung) insere entre a identidade forjada no país natal e as influências assimiladas do Oeste. Ai morou de 1981 a 1993 nos EUA, entre Filadélfia, São Francisco e Nova York, e desde 2015 vive em Berlim, num exílio autoimposto a partir do momento em que conseguiu reaver seu passaporte, confiscado pela polícia chinesa depois de ter passado 81 dias preso em 2011.
Em várias das legendas das 70 obras espalhadas pelo edifício icônico de Oscar Niemeyer, o artista é definido como adepto do ready-made. Não à toa, um dos trabalhos é um perfil (moldado num cabide) de Marcel Duchamp, pioneiro ao criar arte usando objetos utilitários pré-existentes. De fato, o recurso é usado e levado ao limite por Ai. Está tanto no cerne da recomposição inusitada do mobiliário tradicional chinês – como as duas mesas antigas rearticuladas, em exibição no térreo – quanto nas esculturas em madeira de demolição de templos, montadas pela técnica de marcenaria ancestral chinesa, sem cola ou pregos, que compõe obras como Cofre de lua (2008) e Mapa da China (2006). É ainda subvertido nas peças utilitárias, como cabides e brinquedos eróticos, esculpidas em materiais nobres, como madeira de lei e jade. Também está no uso de caranguejos de plástico que remetem ao jantar de 2010 que ele ofereceu e não pode comparecer, para marcar o fechamento pela polícia do seu recém-construído ateliê pequinês de 1 milhão de euros, demolido arbitrariamente pouco tempo depois. Na individual, um vídeo mostra a situação em detalhes.
Composição em ready-made com objetos utilitários
Mas a produção de Weiwei se caracteriza ainda mais pela versão contemporânea da verve duchampiana, o pop à moda de Andy Warhol. Assim como seu antecessor, o artista-ativista é o ponto central sem o qual a articulação dos elementos perde o sentido. Se Warhol funciona como a grife de sua produção, a assinatura que confere valor a serigrafias e fotos, o chinês traz na própria história o pano de fundo para a conceituação dos seus trabalhos. Prolífico usuário de redes sociais, cujos registros ganham nicho particular na mostra, Ai aproveita-se a valer da rapidez com que a informação corre pelos meios digitais, seja a internet ou as câmeras de foto e vídeo, uma vantagem e tanto em relação ao norte-americano, com seus filmes em super 8 e o suprassumo da velocidade de sua época, a foto instantânea Polaroid – que levava alguns minutos para aparecer no papel.
Tendo a irreverência como marca e a proficuidade de registros e aparições como estratégia para fazer barulho e atrair atenção, o chinês embaralha os códigos usuais pelos quais se definem as configurações geopolíticas atuais. No lugar de cenas orientais, as urnas de porcelana com a tradicional pintura azul exibem, no segundo andar da mostra, as agruras pelas quais passam os refugiados atuais, seguindo o modelo de representação da antiguidade greco-romana. É o exemplo do estratagema de sobreposição conceitual utilizado pelo artista em conformações inusitadas a cada nova obra, tensionando a divisão chinesa entre tradição e contemporaneidade ante as derivações recentes do modelo clássico do ocidente. Como a população massiva de desterrados resultante do colonialismo de outrora, que se espalha hoje tanto pela Europa quanto pelo Brasil.
BRASIL
O país, aliás, entra como elemento ativo da exposição: com o auxílio do curador Marcello Dantas, Ai Weiwei procurou artesãos locais para produzir obras inspiradas na cultura brasileira, num procedimento comum em sua trajetória. Na China, ele contratou mulheres de Jingdezhen, cidade que produz porcelana desde o tempo em que o imperador era o cliente preferencial, para fazer e pintar artesanalmente 100 milhões de Sementes de girassol (2010), exibidas no último andar da Oca.
Aqui, escultores de Juazeiro do Norte (CE) produziram uma série de 200 Ex-votos (2018), esculturas de madeira usadas para pagar promessas, que surgem em imagens icônicas da carreira de Ai, como a urna ancestral chinesa estampada com o logo da Coca-Cola, a mão com o dedo médio em riste e a reprodução da foto do menino refugiado morto na praia, com o rosto afundado na areia. Couros de boi trazem frases políticas de músicas nacionais e pensadores como Paulo Freire, grafadas no alfabeto armorial de Ariano Suassuna.
Produzida em São Caetano do Sul (SP), a porcelana volta à baila nas peças de fruta do conde, ostra, dendê e abacaxi, cujas iniciais formam a palavra Foda, parte da sequência de trabalhos Fuck, reforçando o gesto com a mão que o artista se habituou a fazer para prédios governamentais importantes – por sinal, gravado num bronze que também figura na exposição. Enormes raízes de árvores que já tinham sido cortadas lembram obras de Frans Krajcberg, que Ai afirmou não conhecer. Finalmente, um molde em gesso do corpo nu do artista repousa sobre um colchão de verdade, com um dos braços coberto de sementes, ao lado do molde do corpo também nu de uma modelo baiana desconhecida, com cabelo em tranças.
Como o artista ficou no Brasil pouco mais de um ano, é natural que os trabalhos lidem com aspectos mais típicos e vistosos da cultura local, outra característica do procedimento pop. O que não deixa de resvalar em clichês, como a ideia das frutas como estandartes do país, que vem desde a baiana de Carmem Miranda no começo do século XX. Ou o imaginário erótico exacerbado, que despertou o desejo do artista e deu origem à obra dos corpos no colchão, trazendo no bojo a referência incômoda e usual feita por estrangeiros às mulheres brasileiras.
Nos couros de boi, as frases têm seu impacto diluído pela profusão de mensagens plotadas nas paredes e de informação nas legendas, que conduzem a fruição de cada trabalho a uma univocidade reducionista. Claro que o conhecimento dos fatos que geraram as obras acrescenta à compreensão, mas, em alguns casos, há uma caracterização estrita do sentido que a experiência deve ter.
Apesar disso, a overdose de textos acaba funcionando também como mais uma camada de reverberação dos signos culturais repetidos e contrapostos nos trabalhos. Ao mesmo tempo em que ressaltam diferenças entre Ocidente e Oriente, os ícones de massa diluem fronteiras geopolíticas, na globalização que nivela por baixo, escravizando indivíduos na produção em série padronizadora e desterritorializante. Da mesma forma que Ai Weiwei, nesse panorama somos todos exilados sem direito ao conforto paralisante do pertencimento nacional, com seus costumes e linguagem que nos afirmem ser este ou aquele o solo sobre onde repousar. Estamos sempre em marcha, seja nas Bicicletas forever (2017) ou no barco inflável gigantesco de Lei da jornada (2017).
Contra o niilismo, a força da mostra está naquilo que não é material, mas gravita à sombra dos trabalhos em exibição. Os vídeos documentando as experiências coletivas que produziram obras como Reto (2008-2012) dão outra dimensão aos vergalhões das escolas públicas de Sichuan derrubadas por um terremoto em 2008. As peças de aço manualmente endireitadas estão expostas pela primeira vez em sua totalidade, uma junto à outra, no chão do subsolo. No curta, é possível saber que os operários contratados seguiram trabalhando mesmo durante os 81 dias em que Weiwei esteve preso e sem contato com o mundo. O que torna as obras grandiosas é a estrutura humana movimentada em sua realização, subvertendo os meios de produção em série para a criação de algo que foge ao seu domínio tradicional.
Se a dimensão humana afinal nos mostra onde é nossa casa, justifica-se a onipresença de Weiwei em selfies exibidas na Oca ou nas redes sociais de inúmeros brasileiros que com ele estiveram. O artista está presente. Ai Weiwei é cidadão do mundo e deixa o convite. Cabe a cada um de nós escolher entre um nacionalismo vazio, corrompido pela sociedade de consumo, ou o exílio desterritorializado de quem não se acomoda.
LUCIANA PAREJA NORBIATO é jornalista, crítica de arte e designer artesanal. Cursou Artes Cênicas na ECA-USP (1996-2000) e graduou-se Bacharel em Filosofia pela FFLCH-USP, em 2017. Trabalhou em veículos como Folha de S. Paulo e revista seLecT e encabeçou a assessoria de imprensa do MAM-SP entre 2006 e 2013.