Crítica

O Sandman da TV

Adaptação da HQ de Neil Gaiman, lançada pela Netflix, divide-se entre a fidelidade ao original e o apelo a questões contemporâneas

TEXTO Yellow

22 de Agosto de 2022

O personagem gótico é vivido pelo ator inglês Tom Sturridge

O personagem gótico é vivido pelo ator inglês Tom Sturridge

Imagem Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Confesso que sempre fico aliviado quando se passa mais um ano sem que alguém tenha feito um filme ruim baseado em Sandman”, escreveu o autor Neil Gaiman, ao The Guardian, em 2006. Trinta anos se passaram até que surgisse uma adaptação audiovisual da sua HQ Sandman, lançada em 1988 e, provavelmente, a mais importante dentre os títulos de uma era de ouro dos quadrinhos adultos que aconteceu nas décadas de 1980 e 1990. Desde 1991, já apareceram várias propostas de transformar a HQ de Gaiman em filme e, posteriormente, em série de TV. Mas o próprio funcionamento da indústria cinematográfica se encarregou de arruinar todos esses projetos. Ao passar pelo emaranhado de roteiristas, produtores, diretores e executivos, a história era sempre tão distorcida, ou tão megalômana, que as produções nunca chegavam à execução de fato.

Foi necessário esperar a criação de uma produtora de TV que tivesse um saco de dinheiro sem fundo (como a bolsa de areia de Sonho) e acesso ao subconsciente do público, para descobrir o que este mais deseja assistir. Apenas a Netflix foi capaz de entender e teve os recursos necessários para realizar o que nenhuma produtora havia admitido: uma adaptação de Sandman só faz sentido se tiver Neil Gaiman envolvido do início ao fim. Aquele universo existe na mente dele e só ele seria capaz de, por um lado, insistir nos aspectos mais importantes da história e, por outro, justificar as inescapáveis mudanças que seriam feitas na adaptação para outra mídia. Então o escritor participou de todas as decisões da adaptação e tem defendido a série com unhas e dentes, fazendo entrevistas e falando com a imprensa junto ao elenco, bastante orgulhoso da nova versão. 

O autor já se envolveu com outras séries e filmes. Além de muitos roteiros que fez sob encomenda, escreveu para a BBC a série Neverwhere (1995); ajudou o amigo Dave McKean a produzir Mirrormask (2005); teve seu romance Stardust adaptado para o cinema (2007); seu livro infantil Coraline virou desenho animado em stop-motion (2009); seu livro Deuses americanos foi transformado em série de TV(2017) e Good Omens, livro que escreveu em parceria com Terry Pratchett, virou minissérie em 2019.

Mas foi preciso que a indústria audiovisual mudasse para que Sandman, com toda a sua complexidade, pudesse ganhar uma adaptação. Nem mesmo a HBO e sua boa reputação na produção de séries como Game of thrones, Watchmen e Lovecraft country conseguiu equilibrar os temas sombrios, os aspectos fantásticos e o enorme orçamento necessário para trazer às telas a obra-prima de Gaiman.

Afinal, o que ficou diferente, entre as versões dos quadrinhos e da TV?

Para começar, o visual do personagem gótico era originalmente inspirado em Robert Smith, vocalista da banda The Cure, e Ian McCulloch, da Echo and the Bunnymen. Ele era narigudo e desgrenhado. A versão atual acabou se tornando um misto entre Trent Reznor, da Nine Inch Nails, e o próprio Neil Gaiman. A voz do ator inglês Tom Sturridge, que interpreta o protagonista, é particularmente reminiscente da voz de Gaiman. 

Os capítulos da série seguem quase exatamente a mesma sequência dos quadrinhos (pelo menos até o final da primeira temporada). Algumas sequências memoráveis não mudam uma vírgula sequer dos balões originais. Se, por um lado, isso aquece os corações do fã-clube da série original, por outro, parece um pouco preguiçoso. Tem certeza, Gaiman, de que você contaria essa história exatamente desta maneira, tantos anos depois de escrita?

Uma das escolhas feita pela TV foi transpor a história, originalmente ambientada no início da década de 1990, para a atual. Essa fidelidade ao quadrinho original gera algumas incoerências. Celulares, por exemplo, quase nunca aparecem, e ainda são usados – como há 20 anos – só para fazer ligações. E não há quase nenhuma menção à web. Na convenção de assassinos seriais, seria de se esperar alguns ciber criminosos, e não os há.

O final da primeira história, Prelúdios e noturnos, é marcado por uma situação que cita O anjo exterminador e descamba na violência de Um cão andaluz. Nos quadrinhos, a sequência é cuidadosamente explicada e justificada pela lógica distorcida dos balões de pensamento do personagem John Dee (bem mais interessante e ambíguo na TV, interpretado pelo adorável inglês David Thewlis, do que o monstrengo dos quadrinhos). Porém, no episódio da série, me pareceu uma exibição absurda de violência gratuita, pois apenas quem já leu o gibi entende o que se passa.

No Twitter, houve alguma polêmica acerca da escolha de atores e atrizes de diferentes etnias, para vários personagens secundários. Gaiman afirmou, em entrevista ao podcast WTF, que houve uma reavaliação geral de todos os papéis. Sempre que não houvesse uma justificativa para que o personagem fosse branco, homem ou hétero, as audições seriam feitas com uma gama mais ampla de perfis de atores. Na nova versão, a Morte é uma mulher negra, e o bibliotecário Lucien, branco na HQ, virou Lucienne, também negra, além de várias outras personagens.


No Sandman televisivo, a atriz Kirby Howell-Baptiste é a Morte. Imagem: Divulgação

Me pareceu uma forçada de barra a caracterização da personagem Unity Kinkaid e, consequentemente, sua descendente Rose Walker, como mulheres negras. Porque ela pertence a uma rica família aristocrática inglesa, do início do século XX, o que não me pareceu factível. Levantei o assunto com alguns amigos negros, e recebi reações diversas. Um amigo concordou comigo e citou um vídeo da ativista Akilah Raawiya que alertava para a escalação de atores negros para papéis de personagens brancos. “Toda vez que saem notícias como (a da atriz negra que interpretará a Pequena Sereia), pessoas pretas ficam emocionadíssimas e comemorando, como se fosse uma vitória para o povo preto. Porque é um povo carente de referências positivas, então acreditam que a solução é pintar tudo o que é branco de preto. Isso é falta do conhecimento da própria história.(...) Não precisamos escurecer o que é branco, pois referências positivas nós já temos. O resgate da autoestima preta virá do contato com a verdadeira história africana”, afirma Akilah em seu canal no Instagram.

Já outra amiga disse que existia essa corrente de ativismo que tenta pensar como o mundo seria sem a diáspora africana: “Não acho ruim. É uma maneira de mostrar como seria uma sociedade sem diferenças raciais, e fazer as pessoas irem se acostumando com a ideia de que as coisas deveriam ser daquela maneira e sobretudo de ver famílias pretas ricas”. Um terceiro amigo, branco, lembrou a utilização, durante muito tempo, do homem branco e hétero como padrão, o que o permitia interpretar diferentes gêneros e etnias. Se, em algum momento, foi aceito que Al Jolson poderia interpretar um cantor de jazz negro, no primeiro filme falado (O cantor de jazz, 1927), seria apenas reparação histórica aceitar que a atriz negra Sandra James-Young interprete a herdeira de uma família de usineiros.

Nada contra mudar o sexo de John Constantine. O próprio Gaiman já tinha feito isso com o personagem de Alan Moore, Stephen Bissette e John Totleben, ao criar Johanna, sua tatara-tatara-tatara-avó. O problema é apenas a cara de pau da atriz Jenna Coleman (O paraíso e a serpente), cuja única expressão é um ligeiro levantar das pálpebras inferiores.

Lúcifer, o Anjo Caído que Gaiman retirou diretamente do Paraíso perdido de John Milton, é andrógino e originalmente inspirado em David Bowie. Está agora representado pela grande Gwendoline Christie (Game of Thrones). Mas as cenas ambientadas no Inferno ficaram meio atrapalhadas, assim como grande parte dos efeitos especiais (nenhum personagem consegue voar em linha reta, é estranho). Ao higienizarem grande parte da crueldade e sanguinolência exibida nos quadrinhos, o lugar ficou parecendo apenas uma rave divertida.


Gwendoline Christie é Lúcifer na adaptação. Imagem: Divulgação

A música está bastante presente na HQ e faz falta à série. No obituário que escreveu para Lou Reed, Gaiman afirma que foi o cantor quem o ensinou a celebrar os marginalizados, e a eventual graça que estes acham ao viver no limite. Em sonhos, as minorias podem transcender o estado imposto pela realidade desperta e realizar plenamente seu potencial. “Sandman, a HQ que fez meu nome, não teria acontecido sem Lou Reed. (...) Morfeu, o Sonho, que dá nome à obra, tem um tratamento que significa mais pra mim do que qualquer outro. Ele também é chamado de Príncipe das Histórias, um título que roubei de I’m set free (‘Fui cegado, mas agora posso ver / O que, no Mundo, aconteceu a mim? / O príncipe das histórias passou bem ao meu lado’).” 

O mundo gay retratado na obra de Lou Reed também inspirou Gaiman a incluir, na HQ Sandman, casais como Judy e Donna (da história Prelúdios e noturnos), drag queens como Hal (de A casa de bonecas) e pessoas trans como Wanda (de Um jogo de você). Mas foi muito estranho ver que o Coríntio, um pesadelo fugido do Sonhar, em ótima caracterização pelo ator norte-americano Boyd Holbrook, seja gay e se interesse em escapadas sexuais. O personagem deveria ser pura maldade. Achei temerário em um momento histórico no qual a afetividade e a sexualidade gay ainda são demonizadas por setores ultraconservadores da sociedade. 

Mas existem detalhes simplesmente perfeitos na adaptação. Desejo, personagem interpretada por Mason Alexander Park, uma pessoa não binária, nasceu para o papel. Na verdade, Mason é tão fã da personagem, que já tinha uma tatuagem dela, e entrou em contato com Gaiman através do Twitter, sem que se conhecessem, assim que soube da adaptação. Perfeito também é todo o sexto episódio (é uma proposta da série fazer episódios com estética e andamento diferentes uns dos outros, e alguns se destacam mais), que recria duas das melhores histórias de Sandman, O som de suas asas e Homens de boa fortuna. 

Outro tema que Gaiman explora, assim como Alan Moore fez com o Dr. Manhattan de Watchmen – e ambos autores já o haviam feito com Miracleman – é o impacto que o poder tem sobre a moralidade de um indivíduo. É curioso como os atos e as decisões de Morfeu não seguem a ética religiosa ou social. Ele pode ser cruel com personagens bons, magnânimo com assassinos… Ao longo dos anos, os leitores acompanharam o amadurecimento emocional de Sonho, ou sua acomodação à moral dos mortais. Na TV, esta mudança é bem menos sutil, o que pode vir a atrapalhar o andamento dos próximos arcos da história. 


Coríntio é o personagem do ator Boyd Holbrook. Imagem: Divulgação

Duas semanas após a estreia original, a Netflix presenteou os fãs, no dia 19 de agosto, com um episódio surpresa, contendo as histórias Um sonho de mil gatos e Calíope.

A primeira história é apresentada como uma animação em 3D, o que pode indicar mudanças estéticas mais arrojadas para a série, uma das principais características da HQ. Isso aproxima mais Sandman a outras séries de antologia da plataforma, como Black mirror e Love, death & robots

Calíope tem seu tom original de nudez e violência bem atenuados (em que um escritor encontra inspiração e sucesso ao manter como refém e escrava sexual uma musa). A personagem titular, que era loura no quadrinho, está sendo interpretada por uma atriz de descendência grega (Melissanthi Mahut), o que faz bem mais sentido. 

O lançamento pode indicar a possibilidade do surgimento de mais episódios com histórias isoladas, pois neste ponto da narrativa, na série de quadrinhos, após o fim de A casa de bonecas, temos uma sequência de historinhas – além dessas duas, Sonho de uma noite de verão e Fachada e Contos na areia, que conta a história da amante de Morfeu, Nada, que já apareceu no episódio Uma esperança no inferno e será importante para o próximo arco narrativo, A estação das brumas. Este formato raramente é utilizado pela plataforma. Apenas Black mirror teve um episódio especial (interativo) lançado. 

Os quadrinhos são uma mídia em que os criadores são forçados a decidirem vários aspectos da história que, na ausência de imagens, seriam de responsabilidade da audiência: a etnia das pessoas, se o dia está nublado ou não. Se isso permite uma concisão maior (um único quadrinho pode descrever visualmente onde se passa uma cena), também impõe ao leitor uma interpretação do que acontece na história. Ainda assim, poucas obras transcendentes, como Sandman, ainda são capazes de manter lacunas semióticas entre um quadrinho e outro, incitando a imaginação a sonhar com o que não é dito ou mostrado. 

A adaptação televisiva rouba do original um clima onírico que emerge dos caudalosos (por vezes, prolixos) textos de Gaiman, que cada leitor consome a seu próprio ritmo. Tentativas de recriar essa atmosfera terminam por ser entediantes, em cenas que parecem desnecessárias ao desenrolar da história. Pessoalmente, a estreia de Sandman na TV me deixa um pouco melancólico, pois a televisão é uma mídia ainda mais impositiva do que os quadrinhos.

O grande sucesso da série em sua primeira semana de streaming (1º lugar na lista dos 10 mais vistos) parece garantir que, a partir de agora, por exemplo, é a voz de Tom Sturridge que vai passar a ser ouvida dentro das cabeças dos futuros leitores dos balões negros de letras brancas que contém os sussurros de Morfeu.



Vale lembrar que, antes das histórias de Sandman, ninguém andava por aí portando ou tatuando o Ankh, hieróglifo egípcio que representa a vida e a eternidade. Pode ver que o personagem está orgulhosamente estampado na camisa de Canhoto, no clipe de A cidade, o primeiro da banda Chico Science & Nação Zumbi. Era uma das principais referências da geração X, quadrinhos para quem era inteligente e mente aberta.

Espero que a nova versão estimule mais pessoas a lerem os quadrinhos originais, ampliem seu repertório e sua imaginação, e que inspire criadores de novas e cada vez mais incríveis histórias.

YELLOW é programador, designer e músico, já produziu quadrinhos e foi professor de semiótica.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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