O gótico nordestino como "tradição de si"
Em livro, Cristhiano Aguiar traz o terror como inteligência que reveste os valores deste século
TEXTO Rogerio Mendes
01 de Abril de 2022
Cristhiano Aguiar, autor do livro
Foto Renato Parada/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 256 | abril de 2022]
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A literatura de terror deixou de ser um gênero subestimado e confirmou-se instrumento de especulação crítica importante sobre as regras do jogo da vida, além-vida e alegoria poética do contemporâneo. A genialidade embutida no que se conta e compreende como terror, antes questionado por entendimentos que relegaram o gênero à expressão menor da literatura, agora se revalida como força que reverbera fissuras nas maneiras de ser e estar no mundo. O que se entende por terror, hoje, apresenta-se mais ao que define e assombra o tempo presente do que antes se apresentava como gênero da Literatura.
Se, antes, a Literatura de Terror restringia-se a temas voltados para o sobrenatural; a imprevisibilidade, imponderável e trágica da psique humana; o mau uso da ciência, apenas para citar os mais recorrentes, a tradição do que se compreende como terror, na mais recente contemporaneidade, relaciona-se ao que poderíamos pensar como narrativas do esgotamento. Essas narrativas apontam para uma espécie de exaustão de valores e modelos civilizatórios que desumanizaram indivíduos e autorizaram a violência de humanos sobre outros humanos. Não por acaso, as literaturas de terror, hoje, aproximam-se das distopias quando se observa os alcances de sua representação insólita. O medo não se relaciona mais, e tão-somente, ao inexplicável. Metáforas e hipóteses absurdas antes possíveis apenas na esfera do ficcional tornaram-se representações admissíveis e cotidianas em experiências e textos que muitos se assemelham a uma espécie de realismo maravilhoso trágico.
A Literatura de Terror está interessada em desestabilizar, psicologicamente, os leitores. Cogitar o absurdo, inexplicável e assustador desafia as razões que organizam os limites da realidade e do humano e definem as bases da tradição que originou o gênero. A literatura de autores como Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Stephen King, Mary Shelley, Anne Rice tornou possíveis ideias, sujeitos, limites e criaturas que não se cogitavam antes. O terror estava no que se imaginava, no que se cogitava.
Hoje, em meio a crise dos modelos civilizatórios, o terror consiste na experiência de estar vivo representado nas diversas possibilidades narrativas. A estética acompanha a ética. A ideia de um gênero que se alimenta do medo é reflexo de uma sociedade que se alimenta do medo. A atual emergência da literatura do terror como metáfora do tempo presente, portanto, é legítima.
Nesse sentido, a Arte retoma as rédeas da lucidez e oferece a linguagem e a forma dos tempos que se vive. O cinema já oferecia apontamentos importantes sobre éticas que configuraram estéticas que hoje nos aproximam de uma ideia diferente do que entendemos como terror. A obra de alguns cineastas como Lars von Trier (Dançando no Escuro, 2000; Dogville, 2003; Manderlay, 2004 etc), Gaspar Noé (Irreversível, 2002), Darren Aronofsky (Mãe, 2007), Jordan Peele (Corra!, 2017, e Nós, 2019), Kléber Mendonça Filho (Bacurau, 2019) e Bong Joon-Hos (Parasita, 2019) foram inteligências importantes não apenas por questionarem os valores que nos tornam humanos, mas no reconhecimento da nossa insuficiência, em grau elevado, como humanos.
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O terror ressurge, portanto, como inteligência que reveste os valores do século XXI e situa o livro Gótico nordestino (Alfaguara, 2022), do escritor Cristhiano Aguiar, como referência para conhecer os interesses dos escritores brasileiros em meio a tantos sentimentos e razões machucados. Tendo lançado em 2018 Na outra margem, o Leviatã (Lote 42), Aguiar volta a apostar nos contos e apresenta projeto inteligente não apenas pela maneira de compreender “a nova ordem do terror”, mas por aproximá-la da experiência particular e coletiva adversa. O livro é fruto de seu recolhimento entre vigílias, memórias e prospecções em concomitância de tempo espiralar presente, passado e futuro. O projeto literário de Aguiar se desenvolve, nessa perspectiva, próximo do que o filósofo francês Michel Foucault chamou de “Escrita de Si”.
A originalidade do projeto literário de Cristhiano Aguiar consiste na maneira como compreende e subverte o senso comum sobre o Nordeste como imaginário. Isso significa, na prática, que o escritor se recusa a entregar à recepção leitora o óbvio: um Nordeste caricato, místico, previsível e miserável. Em vez de recorrer a lendas tradicionais como Comadre Florzinha, a Perna Cabeluda, Biu do Olho Verde, Cristhiano Aguiar não apenas cria suas próprias lendas – como pode ser observado no conto Mulher dos pés molhados, no qual explora a suposta maldição de um navio naufragado e sua repercussão nas tensões familiares, no diálogo entre um pai e sua filha –, mas também ressignifica a Tradição e a percepção do espaço. Relaciona, assim, a “Escrita de Si” a uma “Tradição de Si”. Por essa razão, pode-se dizer que o Gótico nordestino é um tributo à experiência do escritor como nordestino.
Livro reúne nove narrativas, sendo o segundo de
contos do autor. Imagem: Reprodução
Há no projeto literário de Cristhiano Aguiar a proposta de desmistificar o sobrenatural e exaltar a ideia de terror a partir de instituições tradicionais presentes, por exemplo, nas relações familiares. A família, inclusive, presente em boa parte do livro, é uma metáfora importante para entender o que o escritor tenta construir como atmosfera literária.
A família exerce uma vigília que ameaça, afronta, acolhe, desestabiliza, aflige personagens diversos e materializa questões que aterrorizam e comprometem a saúde, a vida de quem nas narrativas ousa viver. É interessante perceber a maneira como Aguiar retrata a ideia do patriarcado e como os personagens visibilizam o tema. A maneira como apresenta seus efeitos trágicos como recusa, violência e desespero em meio a superstições e dispersões dos personagens é, talvez, um dos momentos altos da visão madura do escritor em sintonia com seu tempo. Podemos observar isso no trecho da página 69 do conto Mulher dos pés molhados:
“– Não que a ciência possa explicar tudo, não é isso. Mas a maldição é uma metáfora, painho, da ideia de herança. Veja: pensei muito na gente. Em como eu e você, como nossa família, chegou até aqui. Veja: herança. Doenças hereditárias, profissões que seguimos porque nossos pais as exercem, leituras aprendidas com os mais velhos, um jeito de falar, o tom das nossas vozes. A cor do nosso cabelo. – E ela ergueu diante dele uma mecha do próprio cabelo como exemplo.
O pai, porém, discordava e teimava.
– Somos amaldiçoados, não tem jeito.
– Tu quer saber a verdade? – Elvira retrucou. – A real? Tu cagou com a tua vida. Comigo, com a nossa família. Com mainha. Até com a coitada que te aguenta, que te aguenta não sei como. ‘Ah, se não fosse a maldição’… Ah, vá se foder. Os homens da nossa família foram sempre uns bostas. Não adianta negar. Não tem forças macabras, painho, guiando nossas vidas. Não tem Satanás que justifique um macho bater numa mulher”.
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Até pouco tempo havia expectativa sobre o surgimento de uma estética que pudesse representar as contradições do atual contexto que vivenciamos. Alguns críticos literários apostaram numa espécie de Neorrealismo que se deu a partir da popularização das literaturas periféricas. Motivadas pelo sentimento anticolonial e descolonial, deram visibilidade a escritores e escritoras interessados em (re)discutir a representação estética do protagonismo histórico eurocêntrico no imaginário das sociedades periféricas.
Desigualdades, racismo e miséria são problemas sociais que, na criação literária, podem explicar a dimensão relacional entre os humanos. As relações de poder e suas situações extremas tornaram possíveis imaginações e imaginários que catalisaram o tempo e possíveis entendimentos do que se vive. Compreendemos nessa dimensão “inframundana” projetos críticos e criativos do terror como o de Cristhiano Aguiar e de escritores de sua geração como Santiago Nazarian, Oscar Nestarez, Antônio Xerxenesky, Samanta Schweblin e Mariana Enriquez, apenas para citar alguns.
Possivelmente por essa dimensão relacional e pelo protagonismo que o espaço ocupa no Gótico nordestino, o livro não apresenta personagens elaborados, marcantes. O gótico, aqui, surge como metáfora de um Nordeste como espaço fantasmagórico. Neste sentido, também, e na maneira como concebem o espaço narrativo, é inegável a aproximação que o escritor possui com os escritores brasileiros latino-americanos.
Ao longo das nove narrativas observam-se familiaridades, intervenções (in)voluntárias e/ou homenagens a espaços e personagens de obras que parecem ser importantes para o escritor. Há referências a espaços, personagens e contextos de obras como Ninguém, nada, nunca, de Juan José Saer; Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; Cem anos de solidão, do Gabriel García Márquez; Pedro Páramo, de Juan Rulfo; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; Menino de engenho, de José Lins do Rego. Além destas, outras citações conferem ao Gótico nordestino – se não a novidade e o frescor – a generosidade e o comprometimento de pensar a Literatura com o alcance de grandezas da sua “Tradição de Si” viabilizadas pela “Escrita de Si”. É interessante observar um projeto literário com elucubrações possíveis, bem resolvidas, honestas.
Pensar Gótico nordestino significa pensar também o país pelo prisma do Nordeste, mas isso não faz dele um “acerto de contas”. Consiste mais no convite de construir um olhar generoso sobre o que não foi pensado. Em nenhum momento replica-se um clichê ou atende-se a certas expectativas críticas que – por desconhecimento, preguiça ou preconceito – relutam em perceber (ou admitir): um Nordeste feito de autonomia e encantamentos.
A coragem de escrever e publicar este livro de contos está relacionada à dissolução de fronteiras que pareciam ser improváveis. Cristhiano Aguiar acerta na intersecção que aproxima o Nordeste e o Brasil da América Latina. Não a partir dos vínculos e referenciais literários afetivos, mas da representatividade genuína de ancestralidade.
A resposta consiste na linha tênue que aproxima o crível e o incrível como ambivalências de um só sentido existencial. A grandeza dos projetos literários brasileiros e latino-americanos consistiram nos esforços para compreender o imaginário popular como força que potencializa a relação entre a realidade e a Literatura. Não há dúvida que o livro apresenta-se como esforço de retomadas de país que se desfaz até dos vestígios que o tornam país.
Cristhiano Aguiar dá um passo importante em sua carreira como escritor pela criatividade e comprometimento do projeto literário genuíno que oferece aos seus leitores. É um escritor que nos convida a estarmos atentos aos seus próximos projetos.
ROGÉRIO MENDES, professor de Literatura e Cultura Latino-Americana da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).FELCS).