Crítica

A 'renaissance' de Beyoncé na pista de dança

Cantora estadunidense lança seu sétimo álbum solo de estúdio

TEXTO Henrique Tenório

02 de Agosto de 2022

Em novo álbum, Beyoncé passeia por sonoridades da disco e da 'house music'

Em novo álbum, Beyoncé passeia por sonoridades da disco e da 'house music'

Foto Divulgação

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Os passos de Beyoncé vêm de longe, mas, desta vez, ela caminha para a pista de dança. O globo espelhado pendurado no teto da discoteca se transforma em cavalo, conduzido pela cantora negra na capa de Renaissance, seu sétimo trabalho solo gravado em estúdio. Durante uma hora e dois minutos, Beyoncé percorre sobre 16 faixas de música eletrônica que compõem o primeiro ato de uma trilogia.

Renaissance, lançado em 29 de julho, promove um passeio por sonoridades da era disco e da house music, traçando conexões com o Rhythm and Blues (R&B). Através de temáticas relacionadas à autoestima, amor romântico, erotismo e negritude, a artista nos provoca a não sair da pista de dança. E, de forma divertida, retoma o teor político e a qualidade técnica de sua voz presentes em produções anteriores.

Com 25 anos de carreira, Beyoncé deu início à sua trajetória artística com o grupo de pop e R&B Destiny’s Child. Hoje, aos 40 anos de idade, a artista é sinônimo de sucesso negro na indústria de entretenimento. Ela é a maior ganhadora feminina do Grammy Awards, premiação anual de grande relevância da música estadunidense, conquistando 28 títulos das 64 edições. Em 2022, foi indicada ao Oscar na categoria “melhor canção original” por Be alive, trilha do filme King Richard estrelado pelo ator Will Smith.

Os comentários sobre um novo álbum solo de Beyoncé tiveram início em 10 de junho, quando as suas fotos de perfil foram apagadas no Twitter, Instagram e Facebook. Em pouco tempo, a ausência provocou furor nas publicações online de fãs e de portais de notícias. Na sequência, pelas lentes do fotógrafo brasileiro Rafael Pavarotti, divulgou imagens de seu ensaio de capa para a revista Vogue britânica, no qual já temos um vislumbre do glamour fashionista das pistas de dança, pelo uso de trajes da grife nova-iorquina Area, da italiana Maison Schiaparelli e do designer de moda britânico Harris Reed.

Em seguida, Break my soul foi anunciada e lançada no dia 21 de junho, como a primeira música disponibilizada do trabalho que estava por vir. A faixa, que imerge pela house music, traz o sample de Show me love (1990), da estadunidense Robin S, um clássico do gênero. Break my soul antecipa o diálogo que o Renaissance faz com a música eletrônica tocada nos bailes frequentados por pessoas afrolatinas e LGBTQIAP+, nas últimas décadas do século XX – espaços de resistência política, reafirmada nas práticas de dança Voguing e competições em diferentes categorias de caracterização e de performance.

Ainda em Break my soul, a voz de Big Freedia, rapper trans negra de Nova Orleans, nos convida a liberar a mente da raiva e do estresse, deixando de lado o trabalho, para que, na sequência, o amor se liberte. Desse modo, parte da temática trazida no álbum se evidencia. Freedia já fora ouvida em Formation, primeiro single do premiado Lemonade (2016), álbum anterior de Beyoncé.

Pouco depois da divulgação da primeira faixa, o texto da biografia das redes sociais da cantora mudou para “act 1 – RENAISSANCE”, seguido da data oficial de disponibilização do álbum e da venda do vinil em caixas com produtos colecionáveis. Mesmo sem informar qual seria a capa ou a lista de canções, rapidamente todas as unidades esgotaram.


Capa alternativa do vinil de Renaissance. Imagem: Divulgação

Os lançamentos musicais da Queen B – como é referenciada – chamam atenção pelas diferentes estratégias de divulgação, desde a desenvolvida para o álbum audiovisual homônimo Beyoncé (2013). Com 14 músicas e 17 videoclipes, aquele que seria o quinto trabalho solo da cantora foi liberado digitalmente sem nenhum anúncio prévio. O destaque pelo investimento imagético para todas as canções se repetiria em Lemonade (2016). Beyoncé também tornou-se um ponto de virada nas sonoridades, passando da predominância do pop e R&B dos discos anteriores Dangerously in love (2003), B’Day (2006), I am… Sasha Fierce (2008) e 4 (2011), para um pop mais próximo do rap, com posicionamentos políticos feministas mais diretos – como na faixa Flawless – e em letras com teor sexual mais explícito, a exemplo de Partition e Rocket.

A chegada de um novo trabalho solo de Beyoncé, cerca de seis anos após o lançamento do Lemonade (2016), demarca o retorno da artista depois de mudanças em sua vida pessoal e profissional de maneira inusitada: nenhum videoclipe foi lançado para as faixas que compõem o álbum. Não liberar Renaissance como um álbum audiovisual indica que a estratégia está contraposta não só às expectativas do que Beyoncé usualmente faria, como aponta uma jogada da artista com os modelos atuais da indústria de música pop.

Hoje, conteúdos em vídeos curtos são promovidos nas redes sociais como o TikTok e Instagram, com trechos de áudio e coreografias antes de as músicas serem lançadas pelos artistas. Uma vez que atingem o patamar viral online, as faixas e os álbuns são liberados. Nesse contexto, Beyoncé caminha na contramão da cultura do lançamento massivo de singles e defende álbuns enquanto obras estruturadas para que as faixas sejam ouvidas em conjunto.

A estratégia de lançamento do Renaissance demonstra que ainda existe espaço para o consumo completo de álbuns pop por mídia física e serviços streaming, assim como de músicas que possuem duração maior que dois minutos. Além disso, contraria a premissa quase canônica na música pop de que as faixas de trabalho devem ser divulgadas com videoclipes, estabelecida nos anos de destaque da emissora Music Television (MTV), passando pelo protagonismo do YouTube nos anos 2010 e dos challenges do TikTok nesse início da década de 2020. Isso, no entanto, também faz parte de uma cartada para ressaltar valores de autenticidade, reafirmar unicidade e longevidade de sua carreira enquanto disponibiliza todo o seu catálogo de canções para que criadores do TikTok possam publicar vídeos utilizando-as.

TERCEIRA RENASCENÇA NEGRA
Os três anos de pandemia da Covid-19 aparecem destacados pela cantora, no encarte do Renaissance, como sendo um período difícil, mas também de muita criatividade. Esses tempos possibilitaram um espaço inventivo de escape, um lugar para se sentir livre, longe de julgamentos ou perfeccionismo. Nesse contexto, o título “Renascença”, em tradução livre, se distancia do período histórico europeu do Renascimento (entre os séculos XIV a XVI), convergindo com a celebração dos 100 anos da Primeira Renascença Negra ou Renascimento do Harlem, bairro de Nova York, onde tomou forma o New Negro Movement, movimento cultural com protagonismo de pessoas negras nos Estados Unidos, na década de 1920. Entre as diversas manifestações artísticas, o período foi marcado pelo jazz, sendo o compositor Duke Ellington um de seus principais nomes.

Em 2020, o historiador Ibram X. Kendi demarcou, em artigo publicado na revista Time, que os Estados Unidos vivenciam a Terceira Renascença Negra, com o protagonismo de criadores negros nas artes e no entretenimento. A Segunda Renascença Negra, de acordo com o autor, corresponderia ao Black Arts Movement das décadas de 1960 e 1970. A partir disso, Kendi afirma que a Renascença do Harlem possibilitou que pessoas negras enxergassem a si mesmas; enquanto que a Segunda Renascença devolveu amor-próprio para elas. Já a terceira e atual incentiva que pessoas negras sejam elas mesmas. “Totally. Unapologetically. Freely” (“Totalmente. Sem pedir desculpas. Livremente”, em tradução livre). E, para sintetizar essa proposição, ele recorre a uma frase dita por Beyoncé, em 2018: “Eu gosto de ser livre. Eu não estou viva a não ser que esteja criando alguma coisa”. Como parte desse movimento emergente, a compositora retoma a pista de dança enquanto local onde pessoas negras e LGBTQIAP+ podem e sempre puderam existir em liberdade.

NÃO TENTE SAIR DA PISTA DE DANÇA
Em Renaissance observamos o uso de samples e a reutilização de parte de gravações anteriores da cantora, em dez das 16 faixas. I’m that girl abre o álbum com a voz da rapper Princess Loko sampleada enquanto afirma: “Bitch please, motherfuckers ain't stopping me” (“Vadia, por favor, os filhos da puta não vão me parar”, em tradução livre). O verso faz parte de Still Pimpin (1995), colaboração de Princess Loko com Tommy Wright III. Beyoncé então intercala e sobrepõe a voz da rapper para iniciar um momento de autoafirmação: “Chego nessas roupas, tão linda/ Porque eu estou nelas/ Você sabe que todas essas músicas soam bem/ Porque eu estou nelas”.

A autoestima elevada e a autoconfiança introduzem o álbum e se estendem de I’m that girl para Cozy, Alien Superstar, Thique, All up in your mind e Pure/Honey. Acima das 120 batidas por minuto, Beyoncé se reafirma artista, incentivando que outras pessoas também sintam-se como deusas e deuses. Na sonoridade house experimental futurista da faixa Alien Superstar, produzida pela DJ trans negra Honey Dijon, destacam-se a sua unicidade e a de quem a escuta.

O groove das guitarras de Nile Rodgers, acompanhado de uma linha de baixo mais marcada, executa a transição da house music para a disco em Cuff it. As transições impecáveis entre todas as faixas são um dos trunfos do Renaissance. O novo álbum apresenta uma continuidade que simula a experiência de um bom set de DJ, cuja vontade do ouvinte é de permanecer na pista de dança.

Em Cuff it, a autoestima atua na troca sexual de alto desempenho, onde o erótico surge como caminho para Beyoncé ser elevada, ver Deus e as estrelas. Ao final, ela repete o refrão acompanhada apenas por instrumentos de sopro que logo se despedem e pela linha de baixo sobreposta por um filtro, provocando uma distorção sonora eletrônica. O beat de Energy, faixa seguinte, é esse baixo distorcido. A música apresenta o primeiro feat do álbum, BEAM, rapper jamaicano-americano, e é produzida por Skrillex, um dos principais nomes da música eletrônica dos anos 2010.

Energy é a faixa de transição assertiva para o house de Break my soul e ainda evoca os afrobeats característicos do álbum Lion King: the gift. Em Move, décima faixa, com duas colaborações femininas de peso, a jamaicana Grace Jones, ícone da disco music dos anos 1980, e Tems, cantora nigeriana, sonoridades são retomadas. O contato com elementos musicais da África Ocidental se intensifica pela produção assinada por Beyoncé junto ao nigeriano-britânico P2J, com coprodução do ganês GuiltyBeatz.


Os lançamentos da Queen B trazem diferentes estratégias de divulgação.
Imagem: Divulgação

A sétima música, Church girl, é uma das mais divertidas. Aqui, Beyoncé se aproxima do R&B dançante da famosa Get me bodied (2006) e do bounce que convoca o corpo para o twerking. Enquanto sugere movimentos dançantes, a cantora também provoca a pensar a relação tensiva entre o corpo que vai para a igreja e o que vai para a festa, despindo a culpa do pecado e reafirmando a pista como lugar em que se é possível trazer a vida de volta ao corpo. “I ain't tryna hurt nobody/ Tryna bring a life up in your body” ("Não estou tentando machucar ninguém/ Tentando trazer vida ao seu corpo", em tradução livre).

A música disco é retomada em Virgo’s groove, indicando uma possível referência à Gift from Virgo (2003) ("Presente de Virgem", em tradução livre), faixa de R&B do seu primeiro álbum. Colocadas em paralelo, elas demarcam dois momentos distintos da mesma artista virginiana. Enquanto em 2003 Beyoncé esperava uma noite para finalmente se entregar aos braços do seu amado, agora, ela o chama e conduz uma noite de prazer com nudez e êxtase.

Como espécie de lembrete de que não há como construir o presente da música negra sem olhar para o que um dia foi futuro, Summer Renaissance ("Renascimento de verão", em tradução livre) encerra o álbum com sample e interpolação de I feel love, de Donna Summer. Aqui, o marco que inseriu sonoridades eletrônicas na disco music vira house. Na produção do duo de mulheres negras NOVA Wav, formada por Chi Coney e Blu June, Beyoncé narra uma aventura sexual divertida com seu marido Jay-Z. Entre fetiches, termina apontando que a vida pode ser devolvida ao corpo pelo impulso orgásmico da dança, que está próximo do sexo, da ostentação e das peles suadas em fricção reagindo à circularidade da sequência de sons dos sintetizadores. Talvez isso seja renascer.

HENRIQUE TENÓRIO, jornalista, pesquisador e doutorando em Comunicação na UFPE.

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