Crítica

'Ataque dos cães', um 'western' revisionista?

Das muitas faces que o gênero cinematográfico manifesta desde o século XX, o novo filme de Jane Campion flerta com as subversões de elementos clássicos para falar de temas que estão na ordem do dia

TEXTO Rodrigo Carreiro

16 de Dezembro de 2021

Benedict Cumberbatch (à direita) encarna o caubói durão do filme

Benedict Cumberbatch (à direita) encarna o caubói durão do filme

Foto Divulgação

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Um violão acústico dedilhado em tom menor sublinha o letreiro que rasga a tela negra, estabelecendo geografia e cronologia da história que será contada: Montana (EUA), 1925. Antes mesmo que as primeiras imagens apareçam, a seguir, a música e as palavras tratam de vincular Ataque dos cães (The power of the dog, 2021), da cineasta neozelandesa Jane Campion, a um gênero cinematográfico inequívoco: o western. O filme, que marca o retorno da diretora e roteirista ao formato do longa-metragem, depois de 13 anos afastada para desenvolver uma série televisiva, desenvolve com maestria uma característica importante da carreira de Campion: a subversão delicada, mas implacável, das convenções narrativas de gênero, estabelecidas e alimentadas durante décadas por estúdios (especialmente de Hollywood), críticos e cinéfilos.

Sim, Ataque dos cães pode ser descrito como um western, mas devidamente revirado ao avesso e concebido dentro do contexto sociocultural da atualidade. Os temas de que a obra trata – desejo, repressão social e uma crítica sutil, mas firme, da cultura patriarcal, tudo entrelaçado, como a presença do rapaz de modos delicados (Kodi Smit-McPhee – estão na ordem do dia. Embora a ação narrativa se passe há 100 anos, em uma região rural, conservadora e machista dos Estados Unidos, Ataque dos cães é herdeiro legítimo do zeitgeist dos anos 2020; houvesse sido feito em qualquer outra época, seria um filme muito diferente. É essa percepção que nos leva à conclusão de que o western, mesmo sendo o gênero fílmico que possui os limites de espaço e tempo mais estreitos e bem-delimitados, continua um perfeito veículo universal para histórias marcadas pelas mais diversas nuances históricas e socioculturais.


O rapaz interpretado por Kodi Smit-McPhee. Foto: Divulgação

De fato, o filme de Jane Campion representa a mais recente encarnação de uma tendência cinematográfica historicamente expressiva: o western revisionista e subversivo, no qual os clichês de gênero são rasgados, digeridos e regurgitados, muitas vezes fazendo críticos e espectadores atentos se perguntarem se tamanha subversão não termina por retirar um filme ou outro das fileiras do gênero. Essa, contudo, é uma discussão inútil, fadada a não ter fim. Não há autoridade capaz de determinar com certeza cartorial o pertencimento ou não de determinados títulos às fileiras de qualquer gênero cinematográfico, uma vez que essas categorias são, parafraseando o pesquisador inglês Steven Neale, um dos maiores estudiosos do assunto, o encontro permanentemente negociado – e nunca cristalizado, pois o gênero é uma entidade mutante e em incessante construção – das expectativas de três atores sociais: a crítica, o público e a indústria cinematográfica.

Jane Campion, aliás, não é novata na arte de subverter expectativas de gênero em filmes de época que revelam personagens complexos; basta lembrar de seu filme mais famoso, O piano (1993), que rendeu à neozelandesa a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Oscar de melhor roteiro. Do mesmo modo que naquele trabalho, Ataque dos cães parte do alicerce de um gênero expressivo (no caso do filme de 1993, o melodrama), e de uma história localizada em um passado distante, para refletir de maneira delicada, mas sem afetações, sobre personagens lacônicos e torturados por desejos desviantes, sempre ambientados em sociedades repressivas, de qualquer época que se observe – em especial, o presente.

Há quem afirme que Ataque dos cães não constitua um western legítimo. Vejamos, então: o filme é ambientado na terceira década do século XX, quase não tem índios nem tem assaltantes de banco, não apresenta nenhum tiroteio entre personagens. Isso quer dizer que parte das convenções do gênero – que o pesquisador Edward Buscombe dividiu em formas internas (aspectos narrativos recorrentes, como tipos de personagens, estrutura narrativa e eventos da trama) e iconografia (figurinos, cores, composições pictóricas) – foram eliminados do enredo.

Parte significativa, por outro lado, permanece lá: a temática da vingança; o caubói durão (Benedict Cumberbatch), a viúva infeliz que dirige um bar (Kirsten Dunst), vítima de piadas rudes e sexistas por vaqueiros enlameados; as pradarias pintadas de tons verde-terra magnificamente fotografadas pela fotógrafa australiana Ari Wegner; as roupas barrentas e o sotaque carregado dos caubóis.


Kirsten Dustin vive a viúva da trama. Foto: Divulgação

Na verdade, basta assistir às primeiras imagens para se dar conta de que o filme não apenas parece visualmente um western, mas convoca o espectador a empreender uma leitura que leve em conta as expectativas pelas formas do gênero fílmico: bois se agitam dentro de um curral, enquanto o vaqueiro Phil é enquadrado a partir de uma janela em contraluz, numa linda composição visual que remete à conhecida tomada de abertura do clássico Rastros de ódio (John Ford, 1958). Junto à trilha sonora construída a partir de instrumentos comuns à diegese (violão, piano, violino caipira), Ataque dos cães anuncia ao espectador atento que a narrativa será trabalhada a partir das convenções de gênero, ainda que o faça a partir de uma chave revisionista, que retoma temas caros à diretora e roteirista e os trabalha em uma narrativa contemplativa e lacônica, na qual os personagens pouco revelam sobre si (nunca de modo verbal, nas raras vezes em que o fazem).

Ao optar pelo aceno às convenções do gênero, Jane Campion inscreve o filme numa longa galeria de westerns revisionistas que remete a meados dos anos 1960. Naquela década, os cineastas da primeira Hollywood – entre eles, John Ford e Howard Hawks, os dois grandes mestres do western clássico – estavam sendo substituídos por uma nova geração de diretores, atores e roteiristas, que temperaram os novos títulos do gênero com sabor subversivo. Dali em diante, o western inverteu o tratamento dado aos indígenas, como em Mais forte que a vingança (1972) e Dança com lobos (1990); aos negros, como em Django livre (2012), de Quentin Tarantino, e outros; e às mulheres, entre os quais Os imperdoáveis (1992), de Clint Eastwood. Também questionou a idoneidade moral dos heróis, como nos filmes de Sergio Leone e em todo o spaghetti western feito na Itália dos anos 1960-70, e alargou os limites espaciais-temporais do gênero, como em O segredo de Brokeback Mountain (2005), filme com o qual Ataque dos cães insinua uma aproximação temática que pode (ou não?) ser igualmente subversiva.

Em todos os filmes citados, e em muitos outros, os elementos iconográficos, temáticos e narrativos do western foram sendo mexidos, remexidos e subvertidos, quase sempre refletindo as mudanças socioculturais que ocorriam no tempo presente do mundo ocidental. Não é coincidência, portanto, que o papel da mulher, do negro e do indígena na sociedade – apenas para citar alguns dos modos de subversão utilizados pelos cineastas – tenham sido revistos e recontextualizados, nos anos 1970, 1980 e 1990; esse movimento de revisão historiográfica refletiu valores sociais, morais e culturais das respectivas épocas de produção.

O revisionismo, portanto, passou a constituir uma espécie de espelho do zeitgeist, sempre construído a partir do diálogo crítico, e portanto subversivo, dos novos tempos com as convenções do gênero cinematográfico, estabelecidas ao longo das décadas de 1930 e 1940, no período mais prolífico do gênero (cerca de 30% de todos os filmes produzidos nesse período, segundo o especialista Edward Buscombe, eram westerns).

No caso específico de Ataque dos cães (é preciso observar que não existe nenhum cachorro propriamente dito no filme, sendo o título traduzido ao pé da letra do original, uma citação bíblica devidamente explicada no surpreendente final do filme), portanto, a leitura do filme como um western – e, se possível, o conhecimento prévio de alguns dos filmes definidores desse gênero – parece fundamental para que o espectador contextualize adequadamente as reviravoltas da trama, e até mais que elas; permite que a plateia dê ao longa-metragem de Jane Campion um lugar de destaque na luta contemporânea contra o machismo (explícito, estrutural ou ambos), o sexismo e quaisquer outras representações unidimensionais do desejo.

Ataque dos cães é um legítimo filme de Jane Campion, um libelo contemporâneo contra a cultura patriarcal e, sim, um baita western.

*O filme está disponível na Netflix.

RODRIGO CARREIRO, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE, em que cursou Mestrado e Doutorado em Comunicação (Cinema), e bolsista de produtividade do CNPq.

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