Comentário

Um passo histórico das mulheres em Cannes

Edição de 2021 do principal festival de cinema do mundo, na França, dá Palma de Ouro exclusiva a uma mulher. Pela primeira vez

TEXTO Mariane Morisawa

22 de Julho de 2021

A diretora Julia Ducournau no momento em que recebeu a Palma de Ouro por 'Titane'

A diretora Julia Ducournau no momento em que recebeu a Palma de Ouro por 'Titane'

Foto CHRISTOPHE SIMON/AFP

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A francesa Julia Ducournau fez história no Festival de Cannes de 2021, ao levar a Palma de Ouro por Titane. Ela é apenas a segunda mulher a receber o maior prêmio do evento francês, desde 1946, e a primeira a ganhar sozinha – em 1993, Jane Campion dividiu o troféu por O piano com o chinês Chen Kaige e seu Adeus, minha concubina. Mesmo assim, passados minutos da cerimônia deste ano, que contou com uma gafe do presidente do júri, Spike Lee, anunciando sem querer, logo no início, a vencedora da Palma de Ouro, já tinha gente questionando na internet: mas ela ganhou por mérito ou apenas por ser mulher? 

É o tipo de questionamento que jamais se faz quando um homem branco vence um prêmio. A dúvida paira apenas sobre mulheres, negros e outras minorias. Agora imagine que, em uma das 74 edições do festival, apenas uma diretora ganhou sozinha a Palma de Ouro. Com uma desproporção tamanha, a pergunta mais cabível talvez seja: quantos homens ganharam apenas por serem homens? E também: quantos homens foram selecionados somente por serem homens, por só haver homens brancos nos comitês de seleção, porque os mecanismos de financiamento favorecem os homens? Muitas mulheres nem cogitam fazer faculdade de cinema e, se fazem, não pensam em ser diretoras por não terem cineastas mulheres suficientes em quem se espelhar. 

Na competição do Festival de Cannes de 2021, eram apenas quatro filmes dirigidos por mulheres entre 24. Ou seja, a seleção, em si, não era nada favorável às diretoras. Uma grande parte dos diretores de festivais continuam batendo na tecla de que o mais importante é a qualidade. Certo. Ninguém está defendendo seleção por caridade. Mas em que medida essa qualidade é balizada pela visão de mundo que se tem?

Os grandes festivais se comprometeram, pelo menos, a alcançar a paridade nos comitês de seleção. A provocação feita pela presidente do júri Lucrecia Martel, em Veneza, em 2019, continua válida: e se a gente selecionar 50% de filmes dirigidos por homens e 50% por mulheres, será que a competição vai ficar tão pior assim? Cannes, neste ano, teve pela primeira vez um presidente do júri negro. Dos nove jurados – entre eles, o cineasta e roteirista brasileiro Kleber Mendonça Filho –, cinco eram mulheres. 




Cenas de Titane, filme vencedor dirigido por Julia Ducournau. Fotos: Divulgação

Nas outras competições, as mulheres também foram premiadas. Entre os curtas-metragens, a Palma de Ouro foi para a chinesa de Hong Kong Tang Yi com All the crows in the world, com menção especial para a brasileira Jasmin Tenucci e seu Céu de agosto. O júri de curtas tinha paridade: três homens e três mulheres. A Caméra D’Or, dada para o melhor filme de estreia entre todas as mostras de Cannes, incluindo as paralelas, foi para a croata Antoneta Alamat Kusijanovic, por Antoneta. A diretora não pôde comparecer porque tinha acabado de dar à luz seu primeiro filho. A presidente do júri Caméra D’Or era a atriz Mélanie Thierry. O prêmio da mostra Um Certo Olhar foi para a russa Kira Kovalenko e seu Unclenching the fists. O júri era presidido pela diretora inglesa Andrea Arnold e composto por três mulheres e dois homens. 

A seleção da mostra Um Certo Olhar foi um pouco mais favorável à paridade: sete entre 20 filmes eram dirigidos por mulheres. Mas o equilíbrio maior veio das paralelas. Na Quinzena dos Realizadores, 13 entre 25 longas eram dirigidos por pelo menos uma mulher. Na Semana da Crítica, eram sete dos 13. Mesmo sem ter visto os filmes – como a maioria dos comentaristas de internet, aliás –, é inegável a importância histórica dessas vitórias. 

COBERTURA A DISTÂNCIA
Por causa da pandemia, brasileiro era persona non grata na Croisette. O último festival a permitir a viagem de brasileiros livremente foi Berlim, no ano passado. Cannes não aconteceu de fato em 2020, e Veneza foi presencial, mas sem brasileiros. O Festival de Berlim deste ano, assim como o de Toronto 2020, Sundance 2021 e Roterdã 2021, foram virtuais, com cobertura a distância. 

Como Cannes aconteceu na Riviera Francesa, o acesso a distância foi mais limitado. Mas, na pequena amostra disponível para quem não estava lá ao vivo, deu para perceber que o cinema está se abrindo para as histórias de mulheres e para os filmes dirigidos por mulheres. A começar pelo longa-metragem brasileiro Medusa, de Anita Rocha da Silveira, exibido na Quinzena dos Realizadores e que, como Titane, incorpora elementos de gênero, a exemplo do terror e da fantasia. Mariana (Mari Oliveira) é uma jovem bela, recatada e do lar, membro de uma igreja, que sonha em arrumar um bom marido com sua beleza. Ela participa de um grupo de evangélicas mascaradas que se vinga de mulheres consideradas impuras. Mas, num revide de uma das vítimas, Mariana ganha uma cicatriz no rosto e, pouco a pouco, conquista sua liberdade. Medusa é uma crítica contundente à onda conservadora puxada por algumas igrejas evangélicas no Brasil e ao controle que mesmo algumas mulheres exercem sobre as outras. 


Cena do longa-metragem brasileiro 'Medusa'. Imagem: Divulgação

É também na base do grito que as mulheres se empoderam em Clara sola, da costarriquenha Nathalie Álvarez Mesen, e em The hill where the lionesses roar, da diretora do Kosovo, radicada na França, Luàna Bajrami, ambas diretoras presentes na seleção da Quinzena dos Realizadores. No primeiro filme, Clara (Wendy Chinchilla Araya) é uma mulher de 40 anos que tem mais facilidade de se comunicar com os animais e a natureza do que com os humanos. Ela é considerada milagreira na região e os momentos em que precisa se encontrar com aqueles que vêm consultá-la são torturantes. Não há homens em sua família. Clara vive com a mãe e a sobrinha, mas sofre a opressão patriarcal da mesma maneira. A mãe religiosa reprime qualquer movimento da filha, especialmente aquele que tende para um despertar sexual tardio. A realizadora, que vive na Suécia, coloca o espectador dentro daquela comunidade no meio da mata, capturando as delicadezas da existência difícil de Clara. 

No caso do filme de Bajrami, o grito vem, como o título em inglês sugere (“a colina onde as leoas rugem”), como um rugido. Numa pequena vila em Kosovo, as adolescentes Qe (Flaka Latifi), Jeta (Uratë Shabani) e Li (Era Balaj) não têm perspectivas. A expectativa local é de que se casem e sejam donas de casa e mães. Elas veem na universidade a única maneira de escapar desse destino. Para conseguir dinheiro, começam a cometer crimes. Ironia das ironias, sabem que ninguém vai suspeitar delas, já que são apenas garotas. Bajrami tem apenas 20 anos e, em alguns momentos, sua imaturidade é perceptível. Mas a diretora mostra talento para captar as nuances da amizade feminina e a energia da adolescência. 




Cenas de Clara sola, da costarriquenha Nathalie Álvarez Mesen, e The hill where the lionesses roar, da diretora do Kosovo, radicada na França, Luàna Bajrami, de 20 anos. Imagens: Divulgação

A liberdade feminina também é o tema do espanhol Libertad, de Clara Roquet, que passou na Semana da Crítica. Nora (Maria Morera) é uma adolescente que vai passar férias de verão com a mãe (Nora Navas) na casa de praia luxuosa da avó, Ángela (Vicky Peña). Rosana (Carol Hurtado) é a cuidadora de Ángela, que sofre de Alzheimer. A filha de Rosana, Libertad (Nicolle García), vem da Colômbia para visitar a mãe, que não vê há 10 anos. Libertad, como o nome indica, é aparentemente livre, mas está presa à sua condição de imigrante de um país pobre, à sua classe social. Mas Nora, presa na sua redoma de ouro, fica encantada pela aparente liberdade de Libertad. Mas até que ponto a classe social e a relação de poder podem ser ignoradas numa relação como esta? A verdade é que não podem. Os homens estão quase às margens, mas continuam pressionando as mulheres da história. 

Esses são apenas alguns exemplos de filmes dirigidos por mulheres que estavam no principal festival de cinema do mundo. As obras feitas por diretoras já tinham tido presença constante e potente em Sundance, Berlim, Roterdã. Que seja o mesmo em Veneza, que anuncia sua seleção na semana que vem. Uma participação robusta de mulheres, minorias, filmes de diversos continentes nesses grandes eventos faz com que mais meninas e mulheres, negros, indígenas, africanos, latino-americanos queiram fazer cinema – e se vejam nele. Que tenham espaço para realizar seus filmes e, depois, para exibi-los nas principais vitrines do mundo. A paridade ainda está muito distante. 


Nora (Maria Morera) e Libertad (Nicolle García), no filme que leva o nome da personagem. Imagem: Divulgação

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.

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