A inclusão de Roman Polanski não foi a única questão levantada pela seleção do 76º Festival de Veneza. A outra foi a presença tímida de longas dirigidos por mulheres na competição, apenas dois entre 21: Babyteeth (“dente de leite”, na tradução livre), da estreante australiana Shannon Murphy, e The perfect candidate (“a candidata perfeita”), da saudita Haifaa al-Mansour. Para efeito de comparação, o Festival de Cannes teve quatro mulheres entre 21 candidatos à Palma de Ouro, e a Berlinale escolheu sete diretoras na lista dos 16 concorrentes ao Urso de Ouro.
Como no caso de Polanski – que admitiu sua culpa num tribunal por sexo ilegal com menor nos Estados Unidos, em 1977, fugindo antes da sentença, e é acusado por outras mulheres de abuso sexual –, a presidente do júri, a cineasta argentina Lucrecia Martel, não ficou quieta quando o diretor do festival Alberto Barbera disse ser contra um sistema de cotas no âmbito do festival (ele é a favor em outros pontos do processo, como na admissão nos cursos de cinema e financiamento de filmes). “E se o festival fizesse a experiência por uns dois anos de selecionar 50% de filmes de mulheres e 50% de homens para ver se baixa a qualidade ou se causa um movimento importante?”, propôs Martel. Barbera respondeu afirmando que, se houvesse 50% de longas de qualidade, eles estariam na disputa pelo Leão de Ouro.
Mas a exibição dos 21 longas em competição faz pensar no que Lucrecia Martel disse. Porque dois filmes é muito pouco, ainda mais numa seleção que não foi excepcional no geral – e, pior, até o número de protagonistas femininas foi baixo. Um festival, claro, se faz de nomes consagrados, como o próprio Polanski, e de apostas. Mas há também os diretores que tiveram algum destaque em algum momento de sua carreira e parecem continuar sendo escolhidos pelo peso, mesmo que leve, do nome. O problema é: quantas diretoras com nome de peso suficiente para garantir a seleção num festival como Veneza, mesmo que o filme não seja lá essas coisas, existem no mundo? Kathryn Bigelow, Sofia Coppola, Jane Campion... E não muitas mais.
A atriz Eliza Scanlen como Milla, protagonista de Babyteeth.
Foto: Venice International Film Festival/Divulgação
A qualidade do trabalho não é a questão. “O problema é o financiamento”, disse na mesma coletiva em Veneza a cineasta italiana Susanna Nicchiarelli, presidente do júri da Seção Horizontes. É mais difícil para cineastas do sexo feminino conseguirem financiar seus filmes. E, quando conseguem, em geral é para projetos de porte menor, com histórias mais simples, daqueles que dificilmente vão fazer vista suficiente para um selecionador de um dos três grandes festivais.
De fato, o problema começa antes da inscrição em Berlim, Cannes ou Veneza. Primeiro, nas escolas de cinema. O número de diretoras de destaque é tão pequeno e seu caminho, tão árduo, que muitas mulheres nem sonham em ser cineastas e focam em outras carreiras no cinema. Segundo, na hora de financiar os projetos ou conseguir o trabalho. No mercado norte-americano, por exemplo, Debra Granik levou oito anos para dirigir o ótimo longa de ficção Sem rastros (2018), depois de Inverno da alma (2010), que colocou Jennifer Lawrence no mapa e foi indicado a quatro Oscar. Entre Monster – Desejo assassino, que deu o Oscar de melhor atriz para Charlize Theron, e Mulher Maravilha, Patty Jenkins ficou 14 anos sem dirigir um longa.
Os dois filmes dirigidos por mulheres na competição em Veneza têm claramente um escopo mais modesto do que a maior parte dos selecionados – e até isso foi passível de críticas, por serem considerados “menores”. Babyteeth é a história da adolescente Milla (Eliza Scanlen), que está com câncer, é super protegida pelos pais (Ben Mendelsohn e Essie Davis) e se apaixona pela primeira vez. O longa evita o melodrama e a vitimização da protagonista e cria cenas bonitas do primeiro amor. A diretora Shannon Murphy reclamou por ter que dizer ser uma das duas únicas mulheres da competição, e com razão, porque isso dominou toda a cobertura. Mas a indústria ainda está num ponto em que o simples fato de uma saudita conseguir fazer um longa é motivo de comemoração. The perfect candidate, de Haifaa al-Mansour, é um filme bastante imperfeito, mas traz um olhar único sobre Maryam (Mila Alzahrani), uma médica saudita que enfrenta o preconceito e as dificuldades de trabalhar num hospital sem infraestrutura e decide concorrer a um cargo público para mudar as coisas. É um filme militante, quase de aspiração.
Enquanto a paridade entre homens e mulheres não for alcançada, o número de diretoras na competição de um festival, infelizmente, ainda vai ser notícia. Mas que discutamos também os filmes, tentando deixar de cobrar das mulheres duas vezes mais qualidade para justificar sua presença numa competição.
MARIANE MORISAWA é jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.