Desde que foi lançada do dia 11 de janeiro, Shakira Bzrp Music Sessions 53 teve um desempenho notável nas plataformas digitais. Nas primeiras 24h, foram quase 15 milhões de audições, sendo a música em língua espanhola mais ouvida nos sistemas de streaming num único dia. De acordo com dados da plataforma de áudio Spotify, trata-se da faixa cantada em língua espanhola que mais rápido debutou em primeiro lugar na playlist Spotify Global, sendo também a maior estreia da carreira de Shakira na plataforma. Shakira Bzrp Music Sessions 53 (título que se refere aos projetos colaborativos do produtor argentino) se tornou um enorme hit viral, entrando nas paradas de plataformas de áudio e vídeo em 33 países das Américas, da Europa, da África e da Ásia.
Este processo de viralização parece conter ingredientes que perpassam tanto a composição da canção (Shakira em parceria com Gonzalo Conde, “Keityn” Cruz Moreno e Santiago Alvarado) apresentando “indiretas” para o ex quanto pela capacidade de criação de uma série de especulações em torno dos sentidos da letra. “Sou grande demais para você, é por isso que você está com uma garota igual a você”, canta a colombiana em tom que oscila entre raiva e desdém. Num dos momentos mais raivosos (disfarçados por um canto ligeiramente blasé), Shakira atira: “No sé ni qué es lo que te pasó/ Tás tan raro que ni te distingo/ Yo valgo por dos de 22”, possivelmente se referindo a que “vale por duas de 22”, numa referência à idade da então nova namorada de Piqué, Clara Chía Mari, de atuais 23 anos.
Em alguma medida, a música pop sempre esteve atrelada a encenar, em esfera midiática, traços da biografia de artistas e celebridades. Mas há algo de novo nesta seara: pelo menos, desde a criação do YouTube, em 2005, que usuários/ ouvintes ao mesmo tempo em que assistem aos videoclipes e ouvem as canções, também estão aptos a comentar na própria plataforma, gerando um conjunto de conversações online que vão criando novas camadas de sentido sobre os materiais sonoros e visuais. Estas intensas trocas aumentam a temperatura das redes quando se capilarizam por outros ambientes digitais para além do YouTube, chegando, por exemplo, ao Facebook, Twitter, Instagram e TikTok. Está formado o “clima” propício ao que podemos chamar de uma “cultura de especulação” nas redes digitais, ou seja, um conjunto disperso de suposições, conjecturas e ideias que vão ganhando nuances a cada nova interação.
A cultura de especulação gera o que chamamos de um “quadro dramático” disparado pela canção pop em que, convertidos em personagens mobilizadores de afetos (amor, ódio, desprezo, vingança), somos convidados a “habitar” o drama vivido pela celebridade. No caso da canção Shakira Bzrp Music Sessions 53, Shakira se coloca em primeira pessoa, criando a persona da mulher traída que, para superar a dor, se valoriza a partir de elementos materiais centrais para o capitalismo. Diante do intenso noticiário que orbitou sobre o fim de relacionamento de Shakira e Piqué, desde junho de 2022 – suposta traição, disputa judicial pela guarda dos filhos, questões financeiras –, novas camadas dramáticas vão sendo acrescidas à canção, na medida em que ouvimos a faixa: que memória trazemos à tona do episódio do fim do relacionamento? De que lado ficamos? O que daquele drama colocado na canção se infiltra na nossa própria vida?
A circulação da música vai se tornando ainda mais viral ao passo que diferentes grupos se apropriam da narrativa. Trata-se de uma faixa que empodera mulheres após um fim de relacionamento? Sem dúvidas. Mas a que custo? Numa primeira camada, Shakira Bzrp Music Sessions 53 é uma canção que se orgulha por lucrar em cima de uma desilusão amorosa, fazendo com que cantoras curem suas dores comodificando suas emoções, ou seja, transformando suas vidas em ativos mercadológicos capazes de criar engajamento financeiro (“Las mujeres ya no lloran,/ las mujeres facturan”, canta). Este é um dos principais argumentos de correntes do feminismo que enxergam soluções dentro das linhas do próprio sistema capitalista, alinhadas a princípios da financeirização do mundo, bastante em sintonia com argumentos que ligam figuras femininas a grandes cadeias de bancos, indústrias do entretenimento, marcas e corporações globais.
Numa segunda camada, um pouco mais crítica, Shakira Bzrp Music Sessions 53 é uma canção que também ressalta a superação amorosa a partir da intensificação da disputa entre duas mulheres – Shakira parece, em algumas leituras feministas nas redes sociais digitais, “culpar” outra mulher –, exaltando uma característica individualista típica da apropriação do feminismo pela esfera do capital. Este princípio da acentuação da disputa se distanciaria de correntes, por exemplo, do feminismo negro, indígena ou de correntes mais comunitárias, que primariam pela ideia de aliança entre mulheres contra o patriarcado e os ditames do amor construído nas bases cristãs do casamento.
A questão de gênero ganha, portanto, nuances no consumo em rede da música pop. Neste caso, a partir também de um recorte etário: Shakira é uma mulher mais velha “trocada” por outra mais nova. Tem-se a mudança de uma perspectiva na narrativa sobre o casamento da estrela colombiana com o astro do futebol espanhol: quando começaram a se relacionar, a diferença de idade de Shakira e Piqué era celebrada, ela é 10 anos mais velha do que ele. Agora, no fim do casamento, o deleite da subversão do “etarismo” (ageism) vira dor na voz de Shakira.
As camadas de sentido vão se sobrepondo, se justapondo, formando um mosaico em que nós, espectadores das vidas alheias, nos engajamos enquanto celebramos ou sofremos por conquistas ou desilusões amorosas. Na vivência em rede, a cultura de especulação encontra grande ressonância na produção e consumo da música pop sendo uma das principais ferramentas para engajamento e mobilização de públicos. Não só Shakira adota esta estratégia: Miley Cyrus, Taylor Swift e inúmeras outras cantoras também midiatizam seus fins de relacionamento em um processo de autoficção que se ancora na música pop, nos videoclipes e nos espetáculos musicais. Mas uma outra camada ainda se coloca: estaríamos mais aptos a sentir a dor dos amores através das vozes femininas?
THIAGO SOARES, professor e pesquisador do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde coordena o Grupo de pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (Grupop/CNPq).