As transformações sociais, culturais e tecnológicas pelas quais o mundo passou nos últimos anos, como a popularização da internet, implicaram, como todos os processos históricos, avanços e retrocessos. Grupos historicamente oprimidos, como mulheres, LGBTs e negros, reforçaram suas lutas por visibilidade e igualdade, conquistando espaços até então negados, e pautaram novos debates. As articulações por novas sensibilidades políticas e afetivas provocaram, ao mesmo tempo, reações por parte dos setores retrógrados, intensificando as disputas narrativas entre o homem “imorrível, imbrochável, incomível”, como já se autodefiniu Bolsonaro, e seus opostos.
“A hegemonia masculina em nossas sociedades de cunho patriarcal-falocêntrico considera a si mesma como referência de normalidade. Ora, o hegemônico sempre se julga acima das críticas e até mesmo das análises. Afinal, homem que é homem não chora, não precisa de terapia, não gasta energia com ‘mimimi’. De modo que é natural o masculino hegemônico não se pautar como problema. Somente na última década, com a eclosão de movimentos como o #MeToo, é que a questão da crise masculina invadiu a cena e, ainda assim, de modo pontual – como nas denúncias de assédio dos homens contra as mulheres como parte de uma cultura do estupro. É verdade que muitos estudos chamaram a atenção para a base errática da natureza masculina, e isso não é de hoje. Mas eu me refiro à inexistência de um amplo e inadiável debate para mostrar o masculino tóxico na raiz dos grandes dramas do mundo contemporâneo”, pontua João Silvério Trevisan em entrevista à Continente.
Para o autor, a toxicidade masculina está entrelaçada em diferentes esferas, como família, sexualidade, educação, religiões, e suas implicações reverberam em toda a sociedade. “Do capitalismo desenfreado aos antigos regimes comunistas, passando pelas religiões mais diversas, o que se tem visto é um festival de machos se esbaldando em criar leis e impor obrigações a um planeta inteiro, guardadas as diferenças culturais e geográficas, é claro. Trata-se de uma grave crise em todos os sentidos, e o mundo dominado pelo masculino tóxico se recusa a enxergar as origens em sua própria natureza – aquela acostumada à hegemonia patriarcal e falocêntrica.”
O livro de Trevisan é baseado em um minucioso estudo que ajuda a ampliar a visão sobre a sociedade brasileira e a construção deste paradigma patriarcal. Entre as novidades desta segunda edição de Seis balas num buraco só, está um capítulo dedicado à relação entre o cristianismo e o patriarcado falocrático. O escritor aborda como figuras fundantes da doutrina religiosa, a exemplo de Paulo de Tarso, Clemente de Alexandria e Agostinho de Hipona, defendiam a hegemonia masculina através de novos dogmas e conceitos. Ele aponta a criação do mito da Virgem Maria e da consequente necessidade de uma “pureza” das mulheres como um mecanismo de submissão às dinâmicas do patriarcado, tornando a castidade feminina uma virtude e, portanto, promovendo o controle da sexualidade delas. Essa relação entre cristianismo e patriarcado pode, ao seu ver, ser observada nas bancadas religiosas que ocupam o governo, no Legislativo, Executivo e no Judiciário.
Dentro desse contexto e linha de raciocínio, a ascensão da extrema-direita em diferentes partes do mundo, como o Brasil, se apresenta como um reflexo da profunda crise do masculino no contemporâneo. O escritor aponta que o grau de extremismo demonstrado pelo bolsonarismo já não consegue esconder seu projeto destrutivo, classificado por ele como genocida.
“Bolsonaro é movido por pulsão de morte. Ele já disse isso explicitamente: ‘Como militar, eu fui preparado para matar.’ Não importam divergências semânticas sobre o conceito de genocídio. Conceitos evoluem na história, e é genocídio o que está na base da visão de mundo bolsonarista. Vai desde a arminha ostentada com orgulho até o ódio generalizado a quem não concorda com suas posições, tudo isso acompanhado por ameaças físicas ou práticas de violência concreta. Na verdade, se você elencar as características da crise do masculino, todas elas estão presentes e fartamente ostentadas no governo de Jair Bolsonaro e no bolsonarismo. Sua atuação desastrosa no período da pandemia escancara o descaso pela vida humana – exceto aquelas de sua família, amigos e partidários. Acontece que há um efeito em cadeia, que se expande para toda a sociedade. Bolsonaro e sua tropa abriram a caixa de Pandora da irracionalidade fascista que parecia adormecida em democracias periclitantes. Claro que não se trata de um governo isolado. Se não fosse Donald Trump e sua Internacional de Direita, Bolsonaro não teria tido tanta facilidade para se impor. Não há dúvida de que o bolsonarismo é um fantoche do trumpismo”, observa.
Foto: Renato Parada/Divulgação
Ainda sobre a relação da crise da masculinidade que levou Bolsonaro ao poder e que pauta seu governo, Trevisan observa que o falocentrismo é a base ideológica de um projeto político e social reacionário. Seja através do símbolo da arminha com a mão ou suas constantes analogias sexuais, o presidente, seus aliados e seguidores ostentam um discurso permeado pelo falo e, como aponta o autor, o medo da castração.
“Nessas reiterações autoritárias, vejo evidências de problemas sexuais mal-resolvidos que permeiam a agenda da extrema direita, a partir de um ressentimento sexual muito explícito. Por quê? Essa gente vive atormentada pelo fantasma da castração. O pânico de ser passivo (castrado) perpassa todo o bolsonarismo. Até em sua linguagem cotidiana, são recorrentes as metáforas falo-anais. Sempre que pode, ele adora proclamar suas virtudes de macho, como na constrangedora autodefinição de ‘imbrochável e incomível’. O que remete ao velho ditado: dize-me o que ostentas e te direi o que te falta. São sintomas de sua obsessão por um problema que assombra seus sonhos. A meu ver, a repressão sexual que grassa nos meios bolsonaristas, resulta da inveja ao gozo do Outro. Se eu não posso gozar, proíbo o Outro de ter acesso ao gozo. Isso já está atrelado àquela pulsão de morte que mencionei antes e é prelúdio à autodestruição, a partir do ressentimento sexual que embasa a ideologia da direita radical. A sanha do bolsonarismo por destruição denuncia impotência, como se vê na sua maneira de serem medíocres, mentirosos e incompetentes”, enfatiza.
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Em contraposição ao bolsonarismo e às dinâmicas do patriarcado, os movimentos identitários vêm lutando há décadas pelo estabelecimento de novas dinâmicas sociais. João Silvério classifica esses movimentos como espaços de resistência anti-hegemônica, que são caracterizados por várias frentes, como as feministas, antirracistas, indigenistas e dissidências sexuais ou de gênero. Atitudes coletivas e individuais, com figuras com visibilidade midiática, como Laerte Coutinho, Daniela Mercury e Paulo Gustavo, ajudam a criar novas imagens que se contrapõem à masculinidade tóxica.
A cultura, como aponta o livro, sempre foi um importante campo dessas disputas narrativas. O escritor enxerga a possibilidade de ler Deus e o Diabo na terra do sol, clássico filme de Glauber Rocha, lançado em 1964, como uma narrativa épica sobre a crise da masculinidade. O autor aborda ainda outras obras do cinema que põem o tema em destaque, como Além do bem e do mal (1977), da italiana Liliana Cavani; Eclipse de uma paixão (1995), da polonesa Agnieszka Holland; Tom na fazenda, de Xavier Dolan, entre outras.
“É preciso urgentemente encarar a gravidade do masculino tóxico. Mas não há uma resposta simplista para isso. Na queda de braço com o patriarcado falocêntrico, compete a nós o risco de buscar uma sociedade mais justa e igualitária. Aqui, o risco implica a possibilidade de cometermos equívocos. Não por acaso terminei esta edição de Seis balas num buraco só propondo admitir o fracasso criativo como uma saída para nossa inevitável imperfeição enquanto seres humanos. Buscar os contornos do humano é um risco necessário e inevitável, quando se pensa numa sociedade melhor. Esse risco implica a necessária luta contra a hegemonia do masculino tóxico, que nega a castração (o fracasso, o erro, a imperfeição) existente na raiz do humano. Não existe a virilidade ideal, tanto quanto não existe o humano ideal.”
MÁRCIO BASTOS, jornalista e mestrando em Comunicação pelo PPGCOM/UFPE