Comentário

Cinema como espelho da existência

Cem anos após o nascimento do diretor Ingmar Bergman, ainda lidamos com o mal-estar contemporâneo muito bem trabalhado em sua rica e bastante atual cinematografia

TEXTO João Estrela

12 de Julho de 2018

O diretor de cinema Ingmar Bergman (1918-2007)

O diretor de cinema Ingmar Bergman (1918-2007)

Foto Reprodução

Quando Erik e Karin seguraram seu filho nos braços pela primeira vez, eles jamais poderiam imaginar que haviam acabado de trazer ao mundo aquele que Woody Allen definiu como “provavelmente o maior artista do cinema, em todos os sentidos possíveis, desde a invenção da câmera cinematográfica”. Este mês, o mundo comemora o seu centenário: Ingmar Bergman nasceu em Uppsala (Suécia), em 14 de julho de 1918, e morreu em 2007.

Filho de um agressivo pastor luterano e uma dona de casa emocionalmente distante, sua infância oscilou entre longos momentos de isolamento e diversas situações de violência (física e emocional). Chegou à sétima arte através do teatro e é considerado um dos mais inventivos artistas de seu tempo. Ao longo de sua carreira, dirigiu 53 filmes para cinema e televisão, entre eles, clássicos como: Morangos silvestres e O sétimo selo (ambos em 1957); Silêncio (1963); Persona (1966); Gritos e sussurros (1972); e Fanny & Alexander (1982). Aqui, contudo, não se pretende discutir sua vida nem suas contribuições para a história. Outros trabalhos, como sua autobiografia A lanterna mágica e, mais recentemente, o documentário de Jane Magnusson, Bergman – 100 anos (com lançamento agendado para 19 de julho), já cumprem esse papel. Diante disso, pedimos licença para discutir outra questão relativa a Bergman, não menos importante: a relação entre o existencialismo de suas obras e a atualidade.


Cena clássica de O sétimo selo, de 1957. Imagem: Reprodução

Com o fim da primeira metade do século XX, o mundo ainda tentava digerir a barbárie das duas grandes guerras e seus desdobramentos sociais e políticos. Em resposta a isso, o existencialismo ateu (representado por Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger) tornou-se uma corrente de pensamento influente, sobretudo na Europa. Tratava-se de uma tentativa de explicar questões fundamentais como a morte, a solidão da modernidade, a liberdade e o verdadeiro sentido da vida (ou a ausência dele). O que os filósofos explicavam com ideias e conceitos abstratos, os artistas representavam de maneira subjetiva e em diferentes perspectivas estéticas. Foi nessa época que Ingmar Bergman presenteou o mundo com suas contundentes reflexões a respeito dos demônios que afligem a humanidade.

É impossível pensar no trabalho do diretor sueco sem remeter à filosofia. Seus filmes apresentavam temáticas sérias e profundamente dramáticas. Utilizando metáforas – como um jogo de xadrez entre um cavaleiro cruzado e a morte (O sétimo selo), ou a busca de um sacerdote cristão pelo sentido da existência diante da perda da fé (Luz de inverno) –, Bergman fez com que o público questionasse a vida diante da iminência de um fim inexplicável, assim como o desamparo de estar lançado ao mundo sem motivo aparente. Ao retratar um médico idoso e bem-sucedido profissionalmente que, ao longo de uma viagem, revive seu passado e ressignifica a própria vida, enquanto se apercebe da própria frieza para com os outros (Morangos silvestres), o cineasta confrontou os espectadores com o peso da liberdade de escolha e a subjetividade do tempo. Sobre seus personagens pairava um profundo sentimento de vazio que não podia ser preenchido pelo acúmulo de bens, pelo trabalho, pelas relações pessoais (quase sempre apresentadas de maneiras disfuncionais e conflituosas), pela religião, ou por absolutamente nada.


Cena do filme Luz de inverno, de 1963. Imagem: Reprodução

Para o filosofo e doutor em Psicologia Ricardo Pinho, o que torna Bergman um artista eternamente atual é o fato de que sua obra trata de questões fundamentalmente humanas e que não foram deixadas de lado com a virada do século. “A chegada dos anos 2000 trouxe uma grande quebra de expectativas, pois dissipou as esperanças de um mundo melhor, à medida que problemas que acreditávamos ter deixado para trás ainda eram recorrentes”, como a retirada de direitos civis e trabalhistas em vários países do globo, o ódio às minorias, as tensões entre potências nucleares, os campos de concentração e o acirramento de discursos políticos. Por outro lado, a pós-modernidade gerou mudanças de comportamento, como a individualização do pensamento, a dificuldade em estabelecer laços profundos e duradouros, a busca por uma felicidade material conquistada através do consumo e a constante necessidade de se expressar e se fazer notar a qualquer custo.

Numa época marcada pela depressão e outros problemas psicológicos, a sensação de vazio não foi superada. As pessoas ainda se sentem sozinhas e desamparadas, tal qual personagens bergmanianos. Diante desse mal-estar contemporâneo, o mercado de entretenimento tem apresentado um número cada vez mais significativo de trabalhos marcados por uma visão de mundo de caráter existencialista. Alguns exemplos de destaque são as animações para adultos Rick and Morty, em que um cientista louco e niilista, acompanhado de seu neto ansioso e inseguro, viaja pelo multiverso em busca de aventuras, enquanto questiona qualquer senso de moralidade pré-estabelecida, além da mínima possibilidade de sentido para a vida, ou o universo; Bojack Horseman, em que animais antropomorfizados vivem intensas crises existenciais, marcadas por angústias causadas pelas consequências de suas próprias escolhas; e, por fim, as adaptações em quadrinhos da obra máxima de Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, pelas editoras Devir – trabalho da designer brasileira Thaís dos Anjos sob o título Assim falou Zaratustra – Dos céus aos quadrinhos , e L&PM Pocket, na versão em mangá do clássico da filosofia.

“Discutir a obra de um artista como Ingmar Bergman é como debater Shakespeare ou Machado de Assis”, comenta o doutor em Linguística e especialista em Estudos Cinematográficos, Josemar Barbosa. É preciso entender o contexto histórico de sua produção, mas não importa quantos anos se passem desde o seu nascimento, as questões serão sempre as mesmas; o que difere é a forma como lidamos com elas.


Morangos silvestres, de 1957. Imagem: Reprodução

“Nos filmes do diretor sueco, o espelho é sempre um elemento importante na construção do sentido narrativo. É o confronto do eu com o duplo”, explica. Uma das suas principais características estéticas são os inúmeros closes, seguidos de um longo olhar contemplativo em direção à câmera. “Aqui, a câmera também representa um espelho de dupla face; quando suas personagens olham em direção à câmera, estão, na realidade, encarando o público e, sobretudo, a si mesmas. Elas se apreendem da própria condição (de angústia, solidão e desamparo), enquanto nós somos tocados pelo seu sofrimento.” Em contrapartida, o ser pós-moderno está, a todo momento, tomado por distrações fúteis, proporcionadas por suas instituições sociais, pelo advento da tecnologia, por seu estilo de vida narcisista e consumista.

EM TEMPO
Para celebrar o centenário de Bergman, o Cinema da Fundação exibe uma mostra, entre os dias 12 e 18 de julho, no Recife, com seis de seus clássicos (O sétimo selo, Morangos silvestres, Persona, Gritos e sussurros, Sonata de outono e Fanny & Alexander), além da estreia do documentário Bergman – 100 anos. Esta é uma oportunidade de revisitar a obra desse cineasta e, assim como suas personagens, olharmos de frente para a própria existência.



JOÃO ESTRELA é jornalista formado pela Universidade Católica de Pernambuco e escritor amador.

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